sábado, 30 de novembro de 2019

Asas de papel

Minhas mãos, dedos todas elas,
cheias de marcas, inquietas
sempre ocupadas, mania delas.

Experientes, movimentam com louvor
as ferramentas, com precisão e amor:
caneta, papel. Dor.

Com palavras, tinta e dobra
do papel, a arte se forma,
de dentro de mim, põem para fora.

Dobram, sem que eu diga
e o papel, borboleta vira.
Uma a menos dentro da barriga.


______________
Onishiroi Shonin

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Toda noite

O copo me chama.
Ouço meu nome na sua borda
sabendo que verei meu rosto
no líquido espelho âmbar.

O copo me chama.
Nada promete mas
ainda assim acredito,
tolo,
que é verdade esse nada.
A sensação de esquecimento vazio,
como se esse líquido removesse
algo.
Algo de mim.

O copo me chama.
Diz que preciso dele
ou eu que digo.
Eu, verdade, sinto que
preciso.
Para escrever mais uma vez
para sobreviver mais uma vez
para deixar de ser mais uma vez.

O copo me chama.
De alguma forma,
apesar da dor da não-ação
o copo permanece vazio.
Eu, afinal, não preciso
alimentar um pensamento sombrio.


______________
Onishiroi Shonin

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

A censura já chegou

Me falaram que eu nem deveria
escrever isso.
Afinal, é o que precisa ser dito.
E por isso mesmo...

Sumiu a arte de alguém.
Um poema apagado
um desenho rasgado
uma voz silenciada.

Mas não foi censura que chamaram.
A política falou em nota
que apenas removia o absurdo
o irreal, o exagero.

Realidade,
era uma charge absurda.

Afinal, em que mundo sério
martelos parecem fuzis.
livros parecem fuzis.
esquadrias parecem fuzis.
furadeiras parecem fuzis.
e pretos, em geral, parecem ter fuzis.

Cara de quem tem fuzil.
Ou vai ter um dia
caso seja criança e preta.

Me falaram que eu deveria parar.
Não foi a política.
Foi quem me ama.
Talvez por medo de confundirem
meus poemas com fuzis.
Talvez por medo de, simplesmente
me ver em desespero por tanto
tanto
olhar esse abismo do absurdo
que virou o dia a dia.

Rasgaram a charge
quebraram a placa
mataram Marielle
e a qualquer momento
pela pura cultura do medo
(mas sem instituir censura)
vão acabar me calando.

Não.
Não deixe calar a nossa voz.

Fugi da senzala para cantar.
Não deixe calar a nossa voz.
Não deixe censurar a nossa voz.
Não deixe exterminar a nossa voz.

Eu vou continuar
apontando minha caneta
cuspindo tinta e palavras e arte
na direção dos cuspidores de chumbo.

E se me censurarem?

Se me censurarem
por favor,
pegue minha caneta do chão
e continue.

______________
Onishiroi Shonin

domingo, 17 de novembro de 2019

Enquanto isso, no cone sul

A sinfonia é sem ritmo
tocando ao fundo da distopia.
Erguemo-nos, afinal de contas.

Os sons, difíceis não ouvir.

Gritos de ordem, de caos.
Gritos que nos mandam calar.
Atravessam o ar, sons
e pedras e chamas e balas.
As malditas e constantes
balas, de chumbo ou borracha.

Nos querem quietos,
nos querem sentados,
nos querem pacificados,
nos querem mortos, acabados.

Erguemo-nos, afinal de contas.
Olhos cheios de lágrimas,
mesmo antes do gás,
e corações cheios.

Fizemos caos, mas no meio
no meio do caos, do grito,
dos sons tão letais,
fizemos música.

Afinal, ainda temos
os corações cheios.


______________
Onishiroi Shonin

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Sem lenço

Hoje eu me ergui.
Me ergui com armas na mão
e discursei como um herói,
um duvidoso, falho herói,
na frente de tantos outros
que não viam em mim um líder.

Hoje eu me ergui.
Levantei minha bandeira
sem saber se tinha razão
e avancei, de peito estufado
sem olhar para trás, sem saber
se veio atrás de mim a multidão.

Hoje eu me ergui.
Porque todos ao meu redor
indignados, revoltados, furiosos,
calaram.
Sentaram.
Esperaram.

Hoje eu me ergui
como uma pessoa
e nas minhas palavras e atos
e na estupidez confessa do exemplo
todos se ergueram.

Hoje,
hoje nós nos erguemos.

______________
Onishiroi Shonin

domingo, 10 de novembro de 2019

Amanhã lutamos

É domingo, e fez sol.
E fomos a praia e bebemos cerveja
e aproveitamos o mar e o calor
e nos amamos.

Claro, isso não muda as coisas.
Ainda tem desmatamento na Amazônia
e óleo nas praias da Bahia.
Tem protesto e violência no Chile
e guerra e genocídio na Síria.
Tem preconceito e segregação no Brasil
e Witzel comemorando uma morte.

Mas é domingo, e fez sol.
Por isso, hoje, só hoje
tiramos uma folga da guerra
e fomos a praia, levamos cerveja
encontramos amigos, escrevemos poemas.

Porque ser feliz, também virou resistência.

______________
Onishiroi Shonin

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Vida

A vida, que não entendo,
faz-se de um somatório
de pequenas coisas que,
estas,
eu entendo.
Ou finjo que entendo.

Boletos que precisam ser pagos
ou escolher qual atrasar.
Horários para seguir
obrigações a cumprir
deveres a executar
e uma série de outros verbos.

Resistir.

Costumam dizer bastante
resistir.

Eu entendo resistir.
Ou finjo que entendo.

Tudo somado, a vida
é um verbo complexo
e muito, muito chato,
que entendo aos poucos
mas não o muito.

Resisto.

Enfrento.

Amo.

Ah, eu amo.
Em alguma parte da luta
eu amo,
pura e simplesmente
amo.

E esse verbo,
esse pequeno verbo,
eu não entendo em absoluto.

Nesse mistério sem sentido
a estranheza da vida
e todos aqueles verbos

cria razão.

______________
Onishiroi Shonin

domingo, 3 de novembro de 2019

Tá tudo bem

Hoje eu acordei, a contragosto
e na cama fiquei, puro desgosto.
Não consegui sair daqui hoje
e tá tudo bem.

Me falaram para fazer coisas.
Que eu precisava lutar e viver.
Mas não dava, não dava, não dava
e tá tudo bem.

Você tem que sorrir e correr
como se fosse uma escolha ou
uma maldita ditadura da felicidade.
Hoje, hoje não.
Hoje não deu
e tá tudo bem.

Alguns dias até são bons
alguns são ruins
e alguns, alguns dias são piores.
Hoje é um dos dias que não foi.

Não saí da cama.
Não tomei banho.
Não comi direito.
Não sorri.
E tá tudo bem.

As vezes, as vezes,
a gente só fica mal.
E tá tudo bem.

Amanhã, amanhã eu tento de novo.
Mas hoje não vou sair da cama.
Hoje não deu pra mim
e tá tudo bem.

______________
Onishiroi Shonin