domingo, 22 de novembro de 2020

Pá pá pá

Eu sonhei que nascia um novo líder
lá no morro do Pau da Bandeira
mas acordei com o estouro do jornal
não na voz do zé do caroço
nem do grito do garoto com papel
mas do helicóptero que no seu pá pá pá
esconde o nada cirúrgico, o abrangente
pá pá pá
e, antes que possam crescer, já temos
que recorrer a pá, meu deus, a pá.

Eu sonhei que nascia um novo líder
lá no morro do Pau da Bandeira
ou em qualquer outro que fosse
alguém do meu povo, minha cor
que é a sua cor também
seu sangue ao menos.

Mas acordei com o estouro, com o som
do pá pá pá.

A novela, continuou distraindo a gente
nos fazendo sentar no sofá
mesmo sendo dia de sol no domingo
enquanto economizamos as lágrimas
porque a água não chega
e fingindo que era exatamente isso
e mais nada
que queríamos.


______________
Onishiroi Shonin

domingo, 13 de setembro de 2020

Vida adulta

Nem todos os versos de amor
precisam ser épicos e floreados.
As vezes as coisas são simples
prosaicas, banais até,
e perfeitas.

As vezes ocorre um sábado
no qual o sol brilha, embora
não tão forte, só o bastante
para nos fazer parar, olhar
mesmo tendo tanto para fazer.

Parar.
Um do lado do outro,
sem mesmo nos tocar,
os olhos sobre nossa maior
alegria.

Depois a realidade virá.
Mas por agora, no silêncio
o mundo, pequeno fica,
e nos amamos.


______________
Onishiroi Shonin

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Caos

Mais algumas palavras aleatórias.
Existem somente tantas palavras
mesmo com aquelas que criamos no ato
e somente tantas combinações possíveis.
Vou encaixando, volta e meia rimando.
Tentando.

Fica bonito, as vezes. Outras, falho.
Mas não ser bonito tem qualidade
não é beleza a intenção.
É estética
é arte.
Algo complexo, um pouco além
que nem em prosa explico no verso.
Não encaixa.

Nem sempre tem sentido. As vezes.
Ao mesmo tempo, todos tem e tiveram
o mesmo sentido.
Palavras aleatórias. Encaixadas.
Buscando ritmos, formatos, rimas
ou o avesso disso.

Jogando com possibilidades.
Uma hora, um dia, um evento
talvez
as palavras se encontrem, pelo caos,
ou pela técnica, experiência, amadorismo,
no formato, no encaixe, na sequência exata.

Que atraia você
para mim.


______________
Onishiroi Shonin

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Estilo

Fui ao meu lugar favorito.
Quer dizer, quase.
Continua sendo meu lugar favorito,
aquela pedra aonde a mar encontra.

Quase, porque não fui.
Parei na areia, na mar,
olhei a pedra.

Lá, ou aqui,
escrevi um poema, beijei a amada,
cai na mar.

O som, na areia,
como na pedra.

Percebo que estou velho,
pois bebo a memória
no meu favorito lugar,
e questiono a um velho safado
se fiz algo, algo
com estilo.


______________
Onishiroi Shonin

terça-feira, 7 de julho de 2020

Ela morde

Ela morde.
Daquele jeito que deixa marca
para saber no dia seguinte que sou dela.

Ela morde.
Daquele jeito que dói, que fere
para ser os lábios um livro, registro.

Ela morde.
Daquele jeito que dá vontade, desejo
de pegar, tomar, ter, possuir.

Ela morde,
e tem medo de machucar, de quebrar.

Mal sabe ela que fere o corpo
enquanto eu prendo a alma.

Não sabe que eu pego e cuido
levo para casa, amo. Tomo.
Que eu domino, entro na vida.
Participo, vivo.

Morde meus lábios com teu corpo
que mordo tua alma com meus versos.



______________
Onishiroi Shonin

terça-feira, 30 de junho de 2020

A mar

Um pedaço de mar, dentro da sala.
Um salão, todo vazio, mas
salinha, minúscula para a mar.

Regras, lições, ordens, objetivos
inúteis, a mar despersa, sorridente
ressoa música do seu ser liberto
carregando em si uma parte do horizonte
para o qual ela vai, do qual veio,
parte do que é, eterno distante.

Da sua incostância, flui
mesmo na aparência imóvel é
sua superfície toda tensão, movimento
um algo de desequilíbrio e paixão.

Aos olhos dos comuns, encanta
as mentes que despertam em desejo
de assim ser livre, horizonte.

Da beleza que cria, que cada momento se torna,
a pedra que de longe observa faz
inspirado na canção dela
poesia.


______________
Onishiroi Shonin

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Hailie

Alguns a veem homem.
Ela sabe que é mulher.
Nem todos possuem olhos
ou a faculdade do saber.

Ela expressa-se, no jeito, na roupa.
Alguns acham ser cor
e fazem pouco, como se trivial fosse
o cinza-escuro-negro-dor.

Alguns acham passageiro, moda.
Dizem passará, cairá na real.
Um único mundo enxergam, concretizam.
Ela, felizmente, sabe quem é afinal.

Alguns, infelizmente, são muitos e múltiplos,
pessoas de muitas cabeças, mas razão muda.
Ela, muitas vezes só, sobre o esgoto do mundo,
total, una, ideia que é, como buda flutua.

______________
Onishiroi Shonin

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Quatro causas

Uma folha de papel que ainda
não sabe o poema que será
quando do tubo chorar sobre ele
(sem soluços, com calma e precisão)
a tinta negra da minha mão.

Meus melhores amigos, sempre comigo,
as palavras em potência dos versos
que ainda virão a ser, se assim
houverem encontrado seu princípio
numa causa final necessária
tornando a mim, deles mero
(mas eficiente)
instrumento servil.

Usam-me, e despedem-se,
viajando à mentes outras que
sem consciência terem, tocam
abrindo janelas nas almas
para ideias que nem sabiam
caber em palavras.

Os poemas, em ato estes,
infelizmente,
não mais me pertencem.

No meu quarto vazio, fica somente
o papel ainda limpo
a caneta ainda cheia
e o caos da mente irriquieta
pura potência, processo,
nunca completa.


______________
Onishiroi Shonin

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Dois passos atrás

Eis que após tanto tempo
mantendo firme minhas mãos
para que não escorresse
como areia entre os dedos
o meu amor...

percebi que era não eu que segurava
mas as unhas cravadas em mim
que nos juntavam.
Vi no olhar, no calor dos lábios
no desespero da língua que me busca
a alma presa, desesperada.

E foi assim que
entreguei-me ao vento
e tornei-me areia
escorrendo entre as unhas
fugindo daquele beijo
e caindo, caindo, caindo
no fundo do mais negro abismo.

Num último momento,
em que já frio, distante até mesmo
da memória do calor do toque que abandonei
olhei para o céu e vi meu amor
que
livre
sorria.


______________
Onishiroi Shonin

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Um verso em solidão

O farol de minha torre permanece
aceso, iluminando as trevas.
Constante como as pedras sobre
as quais me sustento firme, às quais
pertenço.

Meu barco, em meu pequeno píer,
há muito parado mas ainda pristino.
Não é ele, ou a mar, mas minhas mãos,
admito, um pouco cansadas,
que talvez não tenham mais a força
de procurar lá fora a tempestade distante
que me deixou aqui, ao seguir adiante.

Ou a vontade, contra o dever.

Não vivo só.
A luz do farol socorre e atrai
as almas perdidas que navegam
ou se afogam
pelas trevas do mundo.

No farol elas encontram calor e sustento
direção.

O farol é necessário.
Sobre as pedras deste atol
eu permaneço, cuidando da luz,
mas desejando a tempestade
sempre, sempre distante.

Não vivo só.
Mas da luz do farol
que evita que outros aqui se percam

eu cuido só.


______________
Onishiroi Shonin

terça-feira, 2 de junho de 2020

I can't breathe, ft. Gabriela Cataldo

O dia amanheceu recusando o azul,
no céu, no chão, as ruas vermelhas
do sangue dos nossos derramado,
por uns sentido, outros ignorado.

O fogo que queima na minha'alma
não coube nas veias do silêncio,
foi posto nos carros, nas ruas.
A chama inflama vermelha, e negra.

Mais um negro foi morto e torturado.
Seu crime inafiançável, porte de melanina
pois que mesmo abaixando a cabeça
era ainda um negro.

Um homem negro
morto e torturado.

Há quem ainda acha importante
distinguir, separar, segregar
pela cor de nossa pele.
Como se não bastasse a dicotomia social.

O rei branco na casa um sai impune
com seus bunkers e guardas e cercas.
Pensou em atravessar a rua mas decidiu
não olhar de perto os cartazes brancos
nas mãos negras, ficou atrás das linhas
dos guardas brancos, de roupas negras.

Se acham tão elevados e puros, intocados
com suas mãos manchadas de vermelho-sangue.

Não obstante, eles erguem essas cores
Oscilando suas bandeiras flamejantes.
Todos fascistas, nazistas, racistas
Armados com ódio e desrespeito,
Repletos de indiferença e preconceito,
Repetindo histórias de "não sou mas".

Já não podemos respirar!
Já não podemos nos calar!
Faremos sim, barreira a quem precisa.
Romperemos nosso silêncio,
Encheremos o mundo de protestos.
A injustiça não merece paz.


______________
Onishiroi Shonin & Gabriela Cataldo

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Flexibilização

Precisamos fazer a economia girar
pois sem moedas para o barco da morte
Caronte se recusa a o rio atravessar
e muitos são os que na fila estão, sem sorte.

Não que não haja aqueles que, em casa
demandam pelo direito de que eu saia
para que gire a máquina de sua fábrica
desde que, claro, eu use máscara.

Infelizmente, hoje não deu para protestar
enquanto eu via as bandeiras, a carreata
precisei numa fila madrugar e perguntar
porque eu constava morto para o auxílio já.

Talvez, apenas poupando o tempo, adiantando
o inevitável.

Precisamos fazer a economia girar
pois sem moedas para o barco da morte
Caronte se recusa a o rio atravessar.


______________
Onishiroi Shonin

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Johnny was a good man

Mais uma vez, a mesma cena
eu fui visitar na cama de terra
um novo João, o mesmo João.

Mais uma vez eu vi uma mãe
chorando ao ouvir lhe contar
que seu filho havia morrido
por uma bala

que estava perdida
mas foi achada.
A mesma história mal dita
que muda conforme dita
a mesma história maldita.

Veio o anjo da morte
com suas asas girando
pousou, em João tocou
sem falar mais nada
em si João levou
sem corpo, sem nada
a mesma história, maldita
fingindo bala perdida
achada.

Mais uma vez, a mesma cena.
No mercado negociam, permaneço
por minha cor, por minha origem
mercadoria

perdida
ou achada.


______________
Onishiroi Shonin

segunda-feira, 4 de maio de 2020

A bandeira

Em algum momento acreditamos
nos brasões de armas, combinamos
um símbolo de paz para os anos
verdes, azuis, amarelos, brancos.

Lembro ainda, quando jovem na esperança
que à sua visão, me erguia em dança
e uníamos por uma camisa, virava criança
mas, adulto, tal vira só lembrança.

Parece que virou o tempo
resignificaram em um momento
vieram as armas, foi-se o alento
as cores, hoje, novo tormento.

Na flâmula colorida que se eleva
manifesta, contra o sol se revela
em sombria curva que nos leva
pelas mãos de Azrael soprando a vela.

Vou embora, mas não sem lágrima,
já esperava poder morrer pela nação
mas por ela, com ela, em nome dela
e não executado pela sua própria mão.


______________
Onishiroi Shonin

terça-feira, 28 de abril de 2020

Alguns minutos antes do fim

Me pediram boas notícias e,
se eu pudesse,
um punhado de palavras belas
que tornassem,
como se isso bastasse,
menos dolorosos os dias.

E eu entendo a vontade, pois
tudo que ouço faz do mundo
uma aquarela que tremeluz
sob o filtro da eterna lágrima
presa nos meus olhos que
por resiliência ou desespero
se recusa a correr.

Tivemos que ficar em casa.

Isso não impediu as notícias.
Os nomes, as estatísticas.

Observei o inevitável fim,
já sem forças para sentir
o que realmente deveria
no tão desesperado
crepúsculo dos dias.

No laranja e azul do fim de tudo
enquanto minha esperança se deitava
além do horizonte para nunca mais
uma linha invisível, um papel de seda
e dois ou quatro gravetos
pintou no ar a assinatura infantil
das mãos da criança que voava
em espírito acima das grades
dos bloqueios, das notícias.

No oscilar das rabiolas,
como anzóis alados,
fisgaram meu sorriso de volta
e eu vi que tinha, afinal,

um pequeno punhado de palavras
ainda
belas.


______________
Onishiroi Shonin

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Heráclito tinha razão

Eu não sou mais aquele menino.
Os dias passaram por mim,
rio que sou, que nunca entro,
e viraram anos, o hoje é passado.

Eu mudei de opinião, alterei,
tentando melhorar, espero,
alguns hábitos, manias,
os instrumentos da sinfonia.

Novas ideias, nova harmonia.

Engoli algumas palavras
que nunca mais voltarão, mas
sempre serão.
Ao menos, me comprometi a nunca
nunca mais
deixar que existissem em mim
talvez
e troquei algumas, na prosa
e no estilo do verso
por umas tantas outras palavras.

Estilo...
o estilo mudou
mas sempre tive estilo.

Eu ainda sou aquele menino.
Passaram as águas, nas quais
um dia você esteve, e já
não mais
tenho você dentro de mim.

Mas passam as águas
ainda sou
rio.


______________
Onishiroi Shonin

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Porque a comunidade científica é contra a cloroquina/hidroxicloroquina

A atual crise ocasionada pela pandemia de COVID-19 despertou vários debates acalorados pelo mundo. A sociedade, que já estava em um processo de descrença na ciência e na imprensa tradicional, trouxe este debate para a superfície conforme diferentes autoridades levantam argumentos e estudos sobre o tema. Um destes debates que tem se intensificado circula ao redor de possíveis tratamentos para as complicações geradas pelo vírus. Há quem defenda o uso de algumas substâncias, notadamente a cloroquina/hidroxicloroquina, enquanto outros refutam. O objetivo deste texto é, reduzindo a observação especificamente para este debate, apresentar a razão pela qual existe a resistência ao uso destas substâncias e, principalmente, explicar a diferença entre opinião verdadeira e conhecimento científico.

Dentro dos vários campos da filosofia, um do qual se ocuparam muitos pensadores ao longo dos séculos é a teoria do conhecimento, ou epistemologia. A epistemologia estuda o que é conhecimento, e o que se pode vir a saber, assim como a possibilidade do mesmo. Não é o objetivo deste pequeno ensaio explicar completamente tal tema, mas sim, focar-se em um tópico que foi apresentado já por Platão em seus diálogos, a diferença entre opinião e conhecimento. Apesar do tema surgir em mais de um texto do filósofo grego, creio ser no Mênon aonde é mais claro a distinção entre estes dois conceitos. Distingue-se neste que conhecimento é a opinião verdadeira quando proveniente de um cálculo de causa, o que mais tarde se diria como “justificada”. Já a mera opinião, desprovida deste cálculo e, portanto, injustificada, ocorre de maneira acidental. Então, para usar um exemplo similar ao do diálogo, se duas pessoas desejam o caminho para uma determinada cidade e um destes, sem nunca ter trilhado o caminho, depara-se com uma bifurcação e escolhe aleatoriamente a direção, porventura chegando ao seu destino, este terá se utilizado da opinião verdadeira. Sua escolha não tinha nenhuma justificação, mas por chance, forneceu-lhe o resultado esperado. Se outra pessoa percorre o mesmo caminho tendo em mãos um mapa, deparado com esta bifurcação, irá poder consultar o caminho e escolher a direção a seguir tendo uma justificativa para sua escolha. Um observador que se atente somente ao final prático pode considerar que ambos tem o mesmo valor pois que ambos alcançaram o destino pretendido. Talvez até mesmo acreditasse ser preferível o que seguiu a opinião, já que teria possivelmente perdido menos tempo tentando interpretar um mapa. Contudo, como exposto no diálogo por Mênon, “É menos proveitosa a opinião verdadeira nesta medida, pelo menos, Sócrates: aquele que tem a ciência sempre será bem sucedido, ao passo que aquele que tem a opinião correta às vezes acertará, às vezes não.”

Considerando isso e voltando ao nosso exemplo, imaginemos que ao invés de uma única bifurcação no caminho houvesse várias mais. A cada bifurcação, a pessoa que não tivesse conhecimento do caminho poderia acertar ou errar o caminho, bastando errar uma única vez para que fosse parar em um lugar completamente diferente do intendido. Sua chance de chegar ao seu destino, se por exemplo houvesse cinco bifurcações, seria reduzida pela chance a três em cem. Há de se reconhecer que uma pessoa com um mapa ainda pode errar. A interpretação de um mapa nem sempre é precisa, e um mapa de qualidade inferior pode tornar a interpretação ainda mais difícil. Mas, considerando que houvesse uma chance de 5% da pessoa errar cada bifurcação com o mapa, o que já é uma chance de erro bem grande para um mapa, ainda chegaria no lugar correto em 77 de 100 vezes, uma probabilidade vastamente superior à da pessoa guiada pela opinião. Quanto mais trabalho fosse dedicado a aperfeiçoar o mapa, melhor seria essa probabilidade. Por exemplo, uma mapa com precisão de 98% já mudaria a probabilidade final de sucesso para 90%, enquanto um mapa com 90% de precisão reduziria para 59%. Quanto mais bifurcações houvesse no caminho, mais extremos os efeitos deste mapa.

Pode-se aqui questionar a razão pela qual estou colocando uma chance de erro no mapa quando em Mênon teria sido dito que quem tem a ciência sempre será bem sucedido. Isto é posto pois que modernamente compreendemos que a precisão absoluta do conhecimento é, se não totalmente impossível, extremamente difícil. O objetivo do método científico é não alcançar algo incontestável (embora, admita-se, existam os que tentam), mas reduzir a margem de erro. Por exemplo, muitas pessoas são capazes de erguer uma parede de tijolos. Contudo, quem tem mais estudo e prática tem uma chance menor de erguer uma parede que caia sozinha, embora mesmo estes possam eventualmente cometer um erro.

Voltemos afinal para o debate sobre o uso da cloroquina/hidroxicloroquina. Seu uso em geral é defendido por médicos, como o Osmar Terra, e contestado por biólogos e biomédicos, como o Átila Iamarino. Aqui preciso inserir um ponto que pode ser complexo, mas é necessário. Médicos, em sua grande maioria, não tem formação científica. O que desejo dizer com isso é que a maioria das graduações de medicina, e mesmo as pós-graduações, não ensinam sobre métodos científicos e sobre como realizar pesquisa. Essencialmente, não ensinam como produzir conhecimento. Ensinam como utilizar o conhecimento. São graduações essencialmente técnicas. E isto não é um problema em princípio. Visto a grande quantidade de informações necessárias para o exercer da medicina, é de se valorizar o uso adequado desse conhecimento que por si tem grande utilidade. Dentro do nosso exemplo, o médico seria como alguém que aprendeu muito bem como ler um mapa de forma a não se confundir com o mesmo, mas não aprendeu como desenhar um mapa eficiente. E, habitualmente, na sociedade em que vivemos, as pesquisas médicas tem participação de médicos, mas são conduzidas por especialistas de outras áreas, como biólogos, biomédicos, químicos e outras, que por sua vez tem graduações focadas na produção de conhecimento e nos métodos de pesquisa. Essas são as pessoas que treinaram como fazer mapas.

O que ocorre então com a cloroquina/hidroxicloroquina? Atualmente, não há um “mapa” para estas substâncias em relação ao COVID-19. Temos alguns casos nos quais o uso dela apresentou resultados, mas nenhuma pesquisa extensa dentro das regras metodológicas normalmente utilizadas para a prescrição ampla de um medicamento. Os casos que temos de sucesso ocorreram com pequenas quantidades de pessoas e sem os devidos controles. Não temos como determinar, por exemplo, se foi efetivamente estas substâncias que ofereceram resultados ou se foi somente a reação natural do corpo, ou sua dose correta, ou os possíveis riscos colaterais. Essencialmente, os casos em que ela foi bem sucedida são opinião verdadeira. É como se após trilhar o caminho e alcançar o objetivo nosso viajante determinasse que seguir pela esquerda na bifurcação sempre funcionará. E um observador casual pode acreditar que ele está correto porque o nosso cientista está ainda tentando desenhar um mapa para garantir a precisão do caminho, algo certamente mais demorado.

Contudo, estamos falando de uma trilha que tem bifurcações incalculáveis, e que por vezes a escolha do caminho errado leva a morte de um ser humano. As pessoas que estão contestando o uso em larga escala destas substâncias não pedem que elas sejam proibidas, mas somente que se realizem os testes necessários para que elas possam ser usadas com segurança. Se os testes comprovarem sua eficácia, teremos então conhecimento e poderemos utilizar as mesmas com tranquilidade. Mas se os testes não comprovarem, o uso das mesmas incorrerá em riscos e custos desnecessários. O que a comunidade científica defende não é a passividade, mas a pesquisa destas e outras substâncias para a produção de conhecimento que nos permita realmente garantir segurança no tratamento do vírus que hoje aflige o nosso mundo.

Se fosse para sair de casa e seguir em caminho a um destino cujo caminho desconhecesse, consideraria irresponsável a pessoa que pediu um pouco de tempo para consultar o google maps, ou a que saiu sem pista de como chegar lá? Fica a pergunta.

______________
Onishiroi Shonin

terça-feira, 7 de abril de 2020

O moinho

O moinho do progresso não pode parar
foi o que disse o homem justo
isolado em sua varanda, com vista
para os meus braços na roda.

Eu ouço as engrenagens lubrificadas
pelo sangue dos meus antepassados
e suor dos meus irmãos acorrentados
em correntes de papel e códigos de barras.

O moinho do progresso não pode parar
foi o que disse o velho de camisa verde
que por patriotismo eu deveria defender
o navio negreiro que me deu essa oportunidade

de estar aqui, moendo os ossos dos meus
para o erguer da civilização abençoada
por deus, um que não é o dos meus pais,
mas que eu fui abençoado por conhecer.

O moinho do progresso não pode parar
foi o que disse o hamburgueiro sem chapa
pois que o que seriam uns milhares de mortos
se não mais carne para suas fornalhas?

Continua sendo a carne mais barata
sob chicotes ou horas extras nunca pagas
feitas sob a promessa de liberdade
ou de sociedade.

O moinho do progresso não pode parar
foi o que disse o atlético líder
enquanto garante o direito do feitor
de dispor do meu corpo do jeito que for.

Progresso, conquistei o sonho dos meus
antepassados ao ter direito ao luxo
de cova individual e nomeada
para poderem meus filhos saber quem fui
quando forem eles, felizes e contentes
por conta própria, as piores das correntes,
empurrando o moinho do progresso
por sobre meus próprios ossos.


______________
Onishiroi Shonin

segunda-feira, 23 de março de 2020

Passeio noturno

Passeei pela cidade a noite
por um lugar aonde não fomos.
Gosto de caminhar perdido
com os pés no ar e sem pensar.

Eu vi as luzes da cidade
e as pessoas que não dormem
procurando na noite algo.
É estranho, porque eu
não procuro nada.
Só acontece de, esta noite
eu ter passeado sozinho.

As vezes eu faço isso.

Meus pés perderam-se
e meus olhos encontraram
uma flor linda, que queria,
queria muito, admito,
ter mostrado para você.

Na próxima vez
devemos ir juntos.
Isso vai tornar a flor
ainda mais bela.


______________
Onishiroi Shonin

domingo, 8 de março de 2020

Um verso em azul

Ao som da água, do cheiro,
capturou com o olhar
(mesmo que um pouco desfocado)
um verso no ar.

Um verso em movimento, em cor.
Um verso não escrito que
acontecia.
Um verso no mar.

Em uma sala vazia, coberta
de luz, que não foi feita para ver
mas para sentir, para ser,
um verso no luar.

Um verso em azul
ela era, sendo, vivendo,
com seu sorriso branco,
um verso do amar.


______________
Onishiroi Shonin

domingo, 1 de março de 2020

A mulher na estrada

Existem mulheres na estrada também
que cantam histórias de superação
de crescer num mundo com febem
e ainda ter forças para serem mães.

Mulheres sempre em pé, levando na mão
a criança, o trabalho, o pai, a comunidade,
o sono mal dormido, o irmão,
e todos os exemplares de masculinidade.

Mulheres pelas quais a estrada ultrapassa
atropela, derruba, pressiona, esquece,
cuja história não contam, se disfarça
que o sexo frágil esmorece.

Na rocinha, no vigário, nas favelas do lins
mães, com sonhos, vencedoras, donas
de si, do próprio não, de forças assim
que levantam o sol, primeiras damas.

Mas sobre elas, a estrada passa
e nas ruas do rio, seus becos sem fim
a pê eme se vêm, na bala traça
homens, mulheres, indiferente assim.

Na estrada que fica, enlameada
a carne negra continua sendo mais barata.
Sobram as crianças, ah, as crianças,
suas lágrimas, e pouca esperança.


______________
Onishiroi Shonin

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Tinta nanquim

Um pequeno número em vermelho
me levou a uma memória antiga
uma que eu nunca esqueci, mas
de alguma forma, deixou de importar.

Uma chamada que não atendi,
um momento de ausência, e
a percepção de que não
ouvia, já há tanto tempo,
sua voz.

Perdão, eu não estava disponível.

Eu me pergunto, sobre a memória
se aquela carta que lhe mandei
e da qual nunca recebi resposta
como do poema que nunca foi lido...
se você também não estava disponível.

Não tem mais problema.
Sobre a mancha da lágrima
que caiu no fim da página
marquei em nanquim,
minha escolha a prova d'água,
um ponto final

Depois, fiz exatamente o que
você mesmo me disse, anos antes
dessa mesma memória.

Virei a página
e escrevi novos poemas.


______________
Onishiroi Shonin

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

6 da manhã

Ela passa a maquiagem no transporte
com experiência, compensando o balanço.
Só há tanto tempo no dia, e hoje
(como foi o ontem e, ela acredita, o amanhã)
não há o bastante.

Ela passa a maquiagem no transporte
porque a escola das crianças não é paga sozinha
muito menos por aquele que foi embora.
porque ela acordou cedo, cedo demais
mas não para si, nunca para si.
porque ela dormiu tarde, tarde demais, e as olheiras
não podem aparecer, jamais.

A sociedade não aceitaria isso.
Ela precisa estar linda
(e sorridente, e pacífica, e amável, e disposta)
d i s p o n í v e l
sempre.

Ela passa a maquiagem no transporte.


______________
Onishiroi Shonin

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Faz sol no leblon

Devemos dizer que temos sorte.
Ao menos, ainda podemos ir na praia.
Afinal, aqui ainda faz sol.

Talvez, num lugar tão longe
tão longe que não sei apontar
tenha uma chuva hoje
de fogo e metal
mas, aqui, afinal,
aqui, ainda faz sol
e podemos ir na praia.

Talvez, num lugar tão perto
a caravana seja impedida
por pessoas de marrom e cinza
que não gostam da cor preta
(apesar de também o serem)
circulando por aí.
Mas, aqui, afinal,
aqui acham que a gente não tem cor
e que esse problema não existe
e podemos ir na praia.

Talvez tudo isso seja mentira
mais uma
contada pelos grandes nomes
em mensagens pequenas
nas redes sociais.
Não tenho como saber,
nunca fui até o oriente
nem posso olhar por cima dos muros
através das grades
para minha cidade.

Devemos dizer que temos sorte.
Ao menos, ainda podemos ir na praia
e, se lembrarmos de olhar pra baixo
tapar os ouvidos
e ficarmos bem quietos
talvez nada disso nos incomode.


______________
Onishiroi Shonin