segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Ágatha

Salvamos a alma dela.

Afinal, evitamos que ela
tivesse acesso a conteúdo
assim declarado pornográfico
porque dois homens se beijavam.
Também evitamos ela de ser.

Fazia ballet e falava inglês.
Precisou defender o avô
que ela fazia essas coisas
coisa de branco do asfalto
para que soubessem que era cidadã,
porque os livros de escola
e os sapatos de ballet na mochila
podiam ser confundidos como
foi um dia o martelo de um pedreiro
ou, quem sabe, de um carpinteiro,
com algo que não era uma bíblia.

Salvamos a alma dela.

Impedimos ela de se tornar
uma transgressora, como esperam
que todo preto, pobre e favelado
se torne um dia.

Mas fazia ballet e falava inglês.

Não salvamos ela, uma pena,
do tiro de fuzil

do policial em auto-defesa
do traficante em auto-defesa
do helicóptero em auto-defesa
da sociedade que esqueceu ser social.
Ser feita de gente.

Salvamos a alma dela.



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Onishiroi Shonin

domingo, 22 de setembro de 2019

Porque sim

Um dia foi um beijo
roubado de forma inocente.
Pensamos que seria somente
isso.

Em outro um abraço
um passeio de mãos dadas
e um sorvete num dia frio.
Só porque sim.

Outro dia arrumamos o quarto
sem nenhum bom motivo.
Só estava tarde e decidimos
fazer isso juntos.
Só porque sim.

Antes de sabermos
foram planos e sonhos e
estávamos arrumando uma vida
juntos.

Só porque sim.


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Onishiroi Shonin

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Sistema

Todo dia, tira a roupa social
do cabide, e coloca sobre si.
Torna-se aquilo, sem ser.

A alma, esta tira de si
e pendura no armário.
Não se usa isso aonde vai.

Não é que não se sorria.
Nem que não haja alegria.
Mas essa aparência de vida
é acidental, um erro no sistema.

O sistema é duro, é frio.
Não há espaço para gente
para a vida, para a alma.

Faz-se o que tem que ser feito,
sem lealdades, sem orgulho,
sem alma.

De segunda a sexta, as vezes mais
deixa de viver, para obter
o que acha necessário para manter.

Deixa-se de ser,
para viver.

O sistema processa, o sistema formata.

Todo dia, deixa a alma pendurada
e a olha como estranha
sem sentir nada.


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Onishiroi Shonin

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Desde que você chegou

Me arrumei como quem vai lhe ver
mesmo sabendo que hoje o dia é sem você.
Eu poderia culpar o hábito, se mentisse,
mas nunca fui assim, não antes.

Só ocorre que, com você em minha vida
não tenho aquela estúpida mania
de falsear um eu melhor que o dia-a-dia
quando estou em sua companhia.

Não.
Desde que você chegou, a cada novo amanhecer
tento ser um pouco melhor que ao anoitecer.

Então a casa sempre limpa,
o corpo saudável
a mente em harmonia
o sorriso amável.

Todo momento, mesmo a solitária
e para alguns tenebrosa segunda-feira
sou o meu melhor, mesmo se só,
para você.


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Onishiroi Shonin

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

A cachoeira

Como água que salta da pedra
libertou-se de tudo que não era
e assumiu a forma de que é
sendo, finalmente, si.

Despiu-se sobre o mundo
das correntes, ferro e tecido
mas não sua vaidade.
Ah, sua vaidade!
Desta municiou-se,
dignificou-se.

Deitada como leito de rio
sinuosa e reta, curvilínea línea
se expôs e foi, em foto movimento,
um eterno constante momento.

Do mundo que a admirou
sem nem mesmo abrir os olhos
com a beleza que sabia que era
as bocas calou.


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Onishiroi Shonin

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Sister Tracy

Eu era jovem quando ouvi
Tracy Chapman cantando só
que de nada adiantava chamar
a polícia.

Que eles nada podiam fazer.
Nada, para em casa proteger
a esposa da fúria covarde
da cega ignorância
da estupidez violenta
do abuso doméstico.

Eu cresci para ouvir mais
e mais e mais outra vez
um lamento em angústia
uma história de abuso
um grito de dor
uma vida.

Eu ainda ouço Tracy Chapman
me lembrando que de nada adianta
chamar a polícia.

Ah Tracy, quem dera, quem dera.
Se de nada eles fazem
contra a violência surda
com pressa respondem
ocupando suas mãos
com os livros que poderiam
interromper um dia a cegueira
abrir a boca da voz muda
e fazer desnecessária
a própria polícia.

A violência continua
mas agora, ao menos
não temos mais que nos preocupar
com livros.


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Onishiroi Shonin

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Nós, um poema

A língua dança em tua carne
versos que não precisam de rima
de forma, versos de vulgaridade.

Teus dentes em mim que grito
teu nome em canto e poesia
da arte que não vejo, sinto.

Nós, um impulso dionisíaco
compondo, sendo poema
de dedos, de unhas, do magnífico.

Nosso êxtase, privado recital
de dois que um só ao compor
no corpo marcas de posse, sinal.


Liberto, meu espírito voa
ao lado do teu.
Nós, poetas.
Em minh'alma,
teu verso ainda ecoa.


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Onishiroi Shonin