terça-feira, 28 de abril de 2020

Alguns minutos antes do fim

Me pediram boas notícias e,
se eu pudesse,
um punhado de palavras belas
que tornassem,
como se isso bastasse,
menos dolorosos os dias.

E eu entendo a vontade, pois
tudo que ouço faz do mundo
uma aquarela que tremeluz
sob o filtro da eterna lágrima
presa nos meus olhos que
por resiliência ou desespero
se recusa a correr.

Tivemos que ficar em casa.

Isso não impediu as notícias.
Os nomes, as estatísticas.

Observei o inevitável fim,
já sem forças para sentir
o que realmente deveria
no tão desesperado
crepúsculo dos dias.

No laranja e azul do fim de tudo
enquanto minha esperança se deitava
além do horizonte para nunca mais
uma linha invisível, um papel de seda
e dois ou quatro gravetos
pintou no ar a assinatura infantil
das mãos da criança que voava
em espírito acima das grades
dos bloqueios, das notícias.

No oscilar das rabiolas,
como anzóis alados,
fisgaram meu sorriso de volta
e eu vi que tinha, afinal,

um pequeno punhado de palavras
ainda
belas.


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Onishiroi Shonin

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Heráclito tinha razão

Eu não sou mais aquele menino.
Os dias passaram por mim,
rio que sou, que nunca entro,
e viraram anos, o hoje é passado.

Eu mudei de opinião, alterei,
tentando melhorar, espero,
alguns hábitos, manias,
os instrumentos da sinfonia.

Novas ideias, nova harmonia.

Engoli algumas palavras
que nunca mais voltarão, mas
sempre serão.
Ao menos, me comprometi a nunca
nunca mais
deixar que existissem em mim
talvez
e troquei algumas, na prosa
e no estilo do verso
por umas tantas outras palavras.

Estilo...
o estilo mudou
mas sempre tive estilo.

Eu ainda sou aquele menino.
Passaram as águas, nas quais
um dia você esteve, e já
não mais
tenho você dentro de mim.

Mas passam as águas
ainda sou
rio.


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Onishiroi Shonin

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Porque a comunidade científica é contra a cloroquina/hidroxicloroquina

A atual crise ocasionada pela pandemia de COVID-19 despertou vários debates acalorados pelo mundo. A sociedade, que já estava em um processo de descrença na ciência e na imprensa tradicional, trouxe este debate para a superfície conforme diferentes autoridades levantam argumentos e estudos sobre o tema. Um destes debates que tem se intensificado circula ao redor de possíveis tratamentos para as complicações geradas pelo vírus. Há quem defenda o uso de algumas substâncias, notadamente a cloroquina/hidroxicloroquina, enquanto outros refutam. O objetivo deste texto é, reduzindo a observação especificamente para este debate, apresentar a razão pela qual existe a resistência ao uso destas substâncias e, principalmente, explicar a diferença entre opinião verdadeira e conhecimento científico.

Dentro dos vários campos da filosofia, um do qual se ocuparam muitos pensadores ao longo dos séculos é a teoria do conhecimento, ou epistemologia. A epistemologia estuda o que é conhecimento, e o que se pode vir a saber, assim como a possibilidade do mesmo. Não é o objetivo deste pequeno ensaio explicar completamente tal tema, mas sim, focar-se em um tópico que foi apresentado já por Platão em seus diálogos, a diferença entre opinião e conhecimento. Apesar do tema surgir em mais de um texto do filósofo grego, creio ser no Mênon aonde é mais claro a distinção entre estes dois conceitos. Distingue-se neste que conhecimento é a opinião verdadeira quando proveniente de um cálculo de causa, o que mais tarde se diria como “justificada”. Já a mera opinião, desprovida deste cálculo e, portanto, injustificada, ocorre de maneira acidental. Então, para usar um exemplo similar ao do diálogo, se duas pessoas desejam o caminho para uma determinada cidade e um destes, sem nunca ter trilhado o caminho, depara-se com uma bifurcação e escolhe aleatoriamente a direção, porventura chegando ao seu destino, este terá se utilizado da opinião verdadeira. Sua escolha não tinha nenhuma justificação, mas por chance, forneceu-lhe o resultado esperado. Se outra pessoa percorre o mesmo caminho tendo em mãos um mapa, deparado com esta bifurcação, irá poder consultar o caminho e escolher a direção a seguir tendo uma justificativa para sua escolha. Um observador que se atente somente ao final prático pode considerar que ambos tem o mesmo valor pois que ambos alcançaram o destino pretendido. Talvez até mesmo acreditasse ser preferível o que seguiu a opinião, já que teria possivelmente perdido menos tempo tentando interpretar um mapa. Contudo, como exposto no diálogo por Mênon, “É menos proveitosa a opinião verdadeira nesta medida, pelo menos, Sócrates: aquele que tem a ciência sempre será bem sucedido, ao passo que aquele que tem a opinião correta às vezes acertará, às vezes não.”

Considerando isso e voltando ao nosso exemplo, imaginemos que ao invés de uma única bifurcação no caminho houvesse várias mais. A cada bifurcação, a pessoa que não tivesse conhecimento do caminho poderia acertar ou errar o caminho, bastando errar uma única vez para que fosse parar em um lugar completamente diferente do intendido. Sua chance de chegar ao seu destino, se por exemplo houvesse cinco bifurcações, seria reduzida pela chance a três em cem. Há de se reconhecer que uma pessoa com um mapa ainda pode errar. A interpretação de um mapa nem sempre é precisa, e um mapa de qualidade inferior pode tornar a interpretação ainda mais difícil. Mas, considerando que houvesse uma chance de 5% da pessoa errar cada bifurcação com o mapa, o que já é uma chance de erro bem grande para um mapa, ainda chegaria no lugar correto em 77 de 100 vezes, uma probabilidade vastamente superior à da pessoa guiada pela opinião. Quanto mais trabalho fosse dedicado a aperfeiçoar o mapa, melhor seria essa probabilidade. Por exemplo, uma mapa com precisão de 98% já mudaria a probabilidade final de sucesso para 90%, enquanto um mapa com 90% de precisão reduziria para 59%. Quanto mais bifurcações houvesse no caminho, mais extremos os efeitos deste mapa.

Pode-se aqui questionar a razão pela qual estou colocando uma chance de erro no mapa quando em Mênon teria sido dito que quem tem a ciência sempre será bem sucedido. Isto é posto pois que modernamente compreendemos que a precisão absoluta do conhecimento é, se não totalmente impossível, extremamente difícil. O objetivo do método científico é não alcançar algo incontestável (embora, admita-se, existam os que tentam), mas reduzir a margem de erro. Por exemplo, muitas pessoas são capazes de erguer uma parede de tijolos. Contudo, quem tem mais estudo e prática tem uma chance menor de erguer uma parede que caia sozinha, embora mesmo estes possam eventualmente cometer um erro.

Voltemos afinal para o debate sobre o uso da cloroquina/hidroxicloroquina. Seu uso em geral é defendido por médicos, como o Osmar Terra, e contestado por biólogos e biomédicos, como o Átila Iamarino. Aqui preciso inserir um ponto que pode ser complexo, mas é necessário. Médicos, em sua grande maioria, não tem formação científica. O que desejo dizer com isso é que a maioria das graduações de medicina, e mesmo as pós-graduações, não ensinam sobre métodos científicos e sobre como realizar pesquisa. Essencialmente, não ensinam como produzir conhecimento. Ensinam como utilizar o conhecimento. São graduações essencialmente técnicas. E isto não é um problema em princípio. Visto a grande quantidade de informações necessárias para o exercer da medicina, é de se valorizar o uso adequado desse conhecimento que por si tem grande utilidade. Dentro do nosso exemplo, o médico seria como alguém que aprendeu muito bem como ler um mapa de forma a não se confundir com o mesmo, mas não aprendeu como desenhar um mapa eficiente. E, habitualmente, na sociedade em que vivemos, as pesquisas médicas tem participação de médicos, mas são conduzidas por especialistas de outras áreas, como biólogos, biomédicos, químicos e outras, que por sua vez tem graduações focadas na produção de conhecimento e nos métodos de pesquisa. Essas são as pessoas que treinaram como fazer mapas.

O que ocorre então com a cloroquina/hidroxicloroquina? Atualmente, não há um “mapa” para estas substâncias em relação ao COVID-19. Temos alguns casos nos quais o uso dela apresentou resultados, mas nenhuma pesquisa extensa dentro das regras metodológicas normalmente utilizadas para a prescrição ampla de um medicamento. Os casos que temos de sucesso ocorreram com pequenas quantidades de pessoas e sem os devidos controles. Não temos como determinar, por exemplo, se foi efetivamente estas substâncias que ofereceram resultados ou se foi somente a reação natural do corpo, ou sua dose correta, ou os possíveis riscos colaterais. Essencialmente, os casos em que ela foi bem sucedida são opinião verdadeira. É como se após trilhar o caminho e alcançar o objetivo nosso viajante determinasse que seguir pela esquerda na bifurcação sempre funcionará. E um observador casual pode acreditar que ele está correto porque o nosso cientista está ainda tentando desenhar um mapa para garantir a precisão do caminho, algo certamente mais demorado.

Contudo, estamos falando de uma trilha que tem bifurcações incalculáveis, e que por vezes a escolha do caminho errado leva a morte de um ser humano. As pessoas que estão contestando o uso em larga escala destas substâncias não pedem que elas sejam proibidas, mas somente que se realizem os testes necessários para que elas possam ser usadas com segurança. Se os testes comprovarem sua eficácia, teremos então conhecimento e poderemos utilizar as mesmas com tranquilidade. Mas se os testes não comprovarem, o uso das mesmas incorrerá em riscos e custos desnecessários. O que a comunidade científica defende não é a passividade, mas a pesquisa destas e outras substâncias para a produção de conhecimento que nos permita realmente garantir segurança no tratamento do vírus que hoje aflige o nosso mundo.

Se fosse para sair de casa e seguir em caminho a um destino cujo caminho desconhecesse, consideraria irresponsável a pessoa que pediu um pouco de tempo para consultar o google maps, ou a que saiu sem pista de como chegar lá? Fica a pergunta.

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Onishiroi Shonin

terça-feira, 7 de abril de 2020

O moinho

O moinho do progresso não pode parar
foi o que disse o homem justo
isolado em sua varanda, com vista
para os meus braços na roda.

Eu ouço as engrenagens lubrificadas
pelo sangue dos meus antepassados
e suor dos meus irmãos acorrentados
em correntes de papel e códigos de barras.

O moinho do progresso não pode parar
foi o que disse o velho de camisa verde
que por patriotismo eu deveria defender
o navio negreiro que me deu essa oportunidade

de estar aqui, moendo os ossos dos meus
para o erguer da civilização abençoada
por deus, um que não é o dos meus pais,
mas que eu fui abençoado por conhecer.

O moinho do progresso não pode parar
foi o que disse o hamburgueiro sem chapa
pois que o que seriam uns milhares de mortos
se não mais carne para suas fornalhas?

Continua sendo a carne mais barata
sob chicotes ou horas extras nunca pagas
feitas sob a promessa de liberdade
ou de sociedade.

O moinho do progresso não pode parar
foi o que disse o atlético líder
enquanto garante o direito do feitor
de dispor do meu corpo do jeito que for.

Progresso, conquistei o sonho dos meus
antepassados ao ter direito ao luxo
de cova individual e nomeada
para poderem meus filhos saber quem fui
quando forem eles, felizes e contentes
por conta própria, as piores das correntes,
empurrando o moinho do progresso
por sobre meus próprios ossos.


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Onishiroi Shonin