sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Taças

Costumam ser duas
mas hoje, é aquele dia
que tem só uma.
E não tem problema nisso.

O vinho veio do Chile
de uvas de antes do caos.
Esperavam, certamente
uma celebração nos anos
que se prepararam para hoje.

Espero que tenham pego algo
desse caos pelo caminho.

Sem alarde, sem cerimônia
esvazia-se a garrafa
enche-se a taça.
Mesmo só, ainda assim
preservo a dignidade.

Afinal, as vezes, um dia só
cai bem.

E não tem problema nisso.

Afinal, amanhã, ou depois
entre o hoje e o para sempre
teremos tempo.


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Onishiroi Shonin

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Quase natal

É segunda, um dia útil, e normal.
Normal no sentido de todos os dias,
ou seja, estranho, incomum,
mas, como os outros, igual.

Um dia que andei sob o sol
e em parte, sob a chuva.
Tenho comigo um conjunto de coisas
que servem para todo momento.
Alguns papéis importantes
outros irrelevantes
e um guarda-chuva, mesmo que
tenha amanhecido com sol.

O tempo muda por aqui.

No meio da semana tem um feriado.
Um dia de feira não-útil.
É uma celebração importante
me falaram.
Dia de união, dia sagrado,
dia de deuses nascerem.

Não que eu não aprecie o momento.
Como tantos outros, passo
na companhia de quem gosto
com bebida e comida.
Talvez celebrando coisas diferentes
mas uns aos outros, em comum.

Depois da celebração, como todos
todos os anos que lembro
sei que ficarei na janela
ao lado de meu querido pai
com uma caneca na mão.
Apreciaremos a companhia
um do outro.
Faremos isso
enquanto olhamos a rua
e vemos as pessoas que logo
fogem da companhia dos seus.

Dias úteis, sagrados, ou outros.
São dias normais,
iguais,
mesmo que diferentes.


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Onishiroi Shonin

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Insegurança, ft. Hailie Furtuozo

Queria fazer origamis
ou qualquer outra coisa
pequena, suave e bela,
te fazer sorrir.

Queria compor um poema
que talvez abrisse a porta
e transformasse em lágrima
a dor que se fecha sólida
tirar de você a mágoa.

Ah, bobo que sou.
Se agora nem meu toque
parece te trazer algo bom
e com as palavras da voz
me pede distância.

Neste momento,
não penso em nada além
dessa dor
que não minha.

Tentei, na minha solidão
te dar o espaço.
Mas enquanto busco silêncio
nas palavras de um livro
e na batida de uma música
minha mente continua com você.

Com a sua dor.

Não sei o que aconteceu.
E mesmo se perguntar
você não dirá se fui eu.

Por essa noite tão vazia
minha mente vaga
procurando uma saída
pra essa insuficiência minha.


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Onishiroi Shonin & Hailie Furtuozo

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Sem penas

Ouço novamente o bater de asas.
O som repetitivo, mecânico, monótono,
as asas de Uriel anunciando
paz, em sua forma final.

Olho para cima com calma, sem medo.
Sei que deveria, como meus amigos,
sair correndo, buscar abrigo,
ficar em casa.
Mas também preciso procurar emprego.

Vejo a forma negra no céu,
seteiras de anjo apontadas
procurando, julgando, executando.

Ouço o bater de asas de Uriel
e o som seco, que ecoa na favela.
Mais um dos meus iguais
para sempre em paz.

Cancelaram as aulas,
pois os vivos
ainda estão em guerra.



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Onishiroi Shonin

domingo, 1 de dezembro de 2019

3000 versos

Os 3000 versos que dentro de mim
se agitam, querendo sair, querendo ser
borboletando na barriga, lutando
para se encontrarem, formarem poesia.

Os 3000 versos que a cada olhar
sem um aviso em mim coloca.
Versos, filhos do seu toque, jeito,
versos que me agitam, me acordam.

Os 3000 versos que, tempestade e caos
me lançam nas pedras, me obrigam ao papel
e então me largam, tímidos, sem querer
sair de mim, apenas se esconder.

Os 3000 versos, que dia a dia, um a um
tiro de dentro da barriga para sobre o papel
para que, depois, com um único olhar,
você os recrie em mim, eterno borboletar.


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Onishiroi Shonin

sábado, 30 de novembro de 2019

Asas de papel

Minhas mãos, dedos todas elas,
cheias de marcas, inquietas
sempre ocupadas, mania delas.

Experientes, movimentam com louvor
as ferramentas, com precisão e amor:
caneta, papel. Dor.

Com palavras, tinta e dobra
do papel, a arte se forma,
de dentro de mim, põem para fora.

Dobram, sem que eu diga
e o papel, borboleta vira.
Uma a menos dentro da barriga.


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Onishiroi Shonin

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Toda noite

O copo me chama.
Ouço meu nome na sua borda
sabendo que verei meu rosto
no líquido espelho âmbar.

O copo me chama.
Nada promete mas
ainda assim acredito,
tolo,
que é verdade esse nada.
A sensação de esquecimento vazio,
como se esse líquido removesse
algo.
Algo de mim.

O copo me chama.
Diz que preciso dele
ou eu que digo.
Eu, verdade, sinto que
preciso.
Para escrever mais uma vez
para sobreviver mais uma vez
para deixar de ser mais uma vez.

O copo me chama.
De alguma forma,
apesar da dor da não-ação
o copo permanece vazio.
Eu, afinal, não preciso
alimentar um pensamento sombrio.


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Onishiroi Shonin

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

A censura já chegou

Me falaram que eu nem deveria
escrever isso.
Afinal, é o que precisa ser dito.
E por isso mesmo...

Sumiu a arte de alguém.
Um poema apagado
um desenho rasgado
uma voz silenciada.

Mas não foi censura que chamaram.
A política falou em nota
que apenas removia o absurdo
o irreal, o exagero.

Realidade,
era uma charge absurda.

Afinal, em que mundo sério
martelos parecem fuzis.
livros parecem fuzis.
esquadrias parecem fuzis.
furadeiras parecem fuzis.
e pretos, em geral, parecem ter fuzis.

Cara de quem tem fuzil.
Ou vai ter um dia
caso seja criança e preta.

Me falaram que eu deveria parar.
Não foi a política.
Foi quem me ama.
Talvez por medo de confundirem
meus poemas com fuzis.
Talvez por medo de, simplesmente
me ver em desespero por tanto
tanto
olhar esse abismo do absurdo
que virou o dia a dia.

Rasgaram a charge
quebraram a placa
mataram Marielle
e a qualquer momento
pela pura cultura do medo
(mas sem instituir censura)
vão acabar me calando.

Não.
Não deixe calar a nossa voz.

Fugi da senzala para cantar.
Não deixe calar a nossa voz.
Não deixe censurar a nossa voz.
Não deixe exterminar a nossa voz.

Eu vou continuar
apontando minha caneta
cuspindo tinta e palavras e arte
na direção dos cuspidores de chumbo.

E se me censurarem?

Se me censurarem
por favor,
pegue minha caneta do chão
e continue.

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Onishiroi Shonin

domingo, 17 de novembro de 2019

Enquanto isso, no cone sul

A sinfonia é sem ritmo
tocando ao fundo da distopia.
Erguemo-nos, afinal de contas.

Os sons, difíceis não ouvir.

Gritos de ordem, de caos.
Gritos que nos mandam calar.
Atravessam o ar, sons
e pedras e chamas e balas.
As malditas e constantes
balas, de chumbo ou borracha.

Nos querem quietos,
nos querem sentados,
nos querem pacificados,
nos querem mortos, acabados.

Erguemo-nos, afinal de contas.
Olhos cheios de lágrimas,
mesmo antes do gás,
e corações cheios.

Fizemos caos, mas no meio
no meio do caos, do grito,
dos sons tão letais,
fizemos música.

Afinal, ainda temos
os corações cheios.


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Onishiroi Shonin

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Sem lenço

Hoje eu me ergui.
Me ergui com armas na mão
e discursei como um herói,
um duvidoso, falho herói,
na frente de tantos outros
que não viam em mim um líder.

Hoje eu me ergui.
Levantei minha bandeira
sem saber se tinha razão
e avancei, de peito estufado
sem olhar para trás, sem saber
se veio atrás de mim a multidão.

Hoje eu me ergui.
Porque todos ao meu redor
indignados, revoltados, furiosos,
calaram.
Sentaram.
Esperaram.

Hoje eu me ergui
como uma pessoa
e nas minhas palavras e atos
e na estupidez confessa do exemplo
todos se ergueram.

Hoje,
hoje nós nos erguemos.

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Onishiroi Shonin

domingo, 10 de novembro de 2019

Amanhã lutamos

É domingo, e fez sol.
E fomos a praia e bebemos cerveja
e aproveitamos o mar e o calor
e nos amamos.

Claro, isso não muda as coisas.
Ainda tem desmatamento na Amazônia
e óleo nas praias da Bahia.
Tem protesto e violência no Chile
e guerra e genocídio na Síria.
Tem preconceito e segregação no Brasil
e Witzel comemorando uma morte.

Mas é domingo, e fez sol.
Por isso, hoje, só hoje
tiramos uma folga da guerra
e fomos a praia, levamos cerveja
encontramos amigos, escrevemos poemas.

Porque ser feliz, também virou resistência.

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Onishiroi Shonin

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Vida

A vida, que não entendo,
faz-se de um somatório
de pequenas coisas que,
estas,
eu entendo.
Ou finjo que entendo.

Boletos que precisam ser pagos
ou escolher qual atrasar.
Horários para seguir
obrigações a cumprir
deveres a executar
e uma série de outros verbos.

Resistir.

Costumam dizer bastante
resistir.

Eu entendo resistir.
Ou finjo que entendo.

Tudo somado, a vida
é um verbo complexo
e muito, muito chato,
que entendo aos poucos
mas não o muito.

Resisto.

Enfrento.

Amo.

Ah, eu amo.
Em alguma parte da luta
eu amo,
pura e simplesmente
amo.

E esse verbo,
esse pequeno verbo,
eu não entendo em absoluto.

Nesse mistério sem sentido
a estranheza da vida
e todos aqueles verbos

cria razão.

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Onishiroi Shonin

domingo, 3 de novembro de 2019

Tá tudo bem

Hoje eu acordei, a contragosto
e na cama fiquei, puro desgosto.
Não consegui sair daqui hoje
e tá tudo bem.

Me falaram para fazer coisas.
Que eu precisava lutar e viver.
Mas não dava, não dava, não dava
e tá tudo bem.

Você tem que sorrir e correr
como se fosse uma escolha ou
uma maldita ditadura da felicidade.
Hoje, hoje não.
Hoje não deu
e tá tudo bem.

Alguns dias até são bons
alguns são ruins
e alguns, alguns dias são piores.
Hoje é um dos dias que não foi.

Não saí da cama.
Não tomei banho.
Não comi direito.
Não sorri.
E tá tudo bem.

As vezes, as vezes,
a gente só fica mal.
E tá tudo bem.

Amanhã, amanhã eu tento de novo.
Mas hoje não vou sair da cama.
Hoje não deu pra mim
e tá tudo bem.

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Onishiroi Shonin

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Tempos difíceis

Meu amor me pediu por boas notícias.
E, pasmo, fiquei em silêncio.

Havia fogo no norte,
óleo no nordeste,
protesto no oeste,
guerra no leste.

Eram tempos difíceis para
pensar alto
falar com liberdade
ser o que formos.
Tempos difíceis
para ser poeta.

E pensei no meu íntimo
quando um outro poeta
cantou que um dia, a música
a própria música
morreu.
E ele pediu por uma canção alegre
e lhe sorriram e desviaram o olhar.

Meu amor me pediu por boas notícias.
Eu abracei, em silêncio,
e no meio do caos
dançamos.

O mundo em chamas, eu sei,
mas mesmo que sejam tempos difíceis
tempos difíceis para ser poeta

nós

ainda ouvimos a música.

Meu amor me pediu por boas notícias.
Eu tenho uma.

Nós.

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Onishiroi Shonin

domingo, 27 de outubro de 2019

Alguns dias são piores

Foi um daqueles dias
em que fiquei algo feliz
por ter saído da cama.

Foi um daqueles dias
que chorei no banho e cama
sem saber porque.
Eu fiz o meu melhor
eu juro.
Mas senti tanto cansaço
que mesmo sem sangrar
mais uma vez morri.

Mas eu saí da cama e,
contragosto,
me dei parabéns.

No desespero sem motivo
girei no dedo o anel invisível
para ler mais uma vez a mensagem
isso também vai passar.

E foi assim, que sem vontade
do fundo da minha tristeza
fiquei algo feliz
por ter saído da cama.

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Onishiroi Shonin

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Cera

Parei para cuidar dos sapatos.
Era necessário, afinal, choveu.
Eles não foram feitos para a chuva.
Questiono as vezes se sequer
foram feitos para andar.

Faço questão de cuidar deles.
Dos meus próprios sapatos.
Não acho que vou fazer melhor
do que ninguém, por ser meu.
Nem acho uma economia inteligente.

Dá muito trabalho isso
de cuidar dos sapatos.

Secar.
Limpar.
Secar.

Tirar os cadarços.

Engraxar.

E eis porque eu faço isso.

Cuido dos meus próprios sapatos
só, somente, tão simplesmente
para usar a escova que você me deu.


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Onishiroi Shonin

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Tricotando

No silêncio, aonde não posso ouvir
nem mesmo o soprar do vento,
pois que até mesmo este
hoje está tão distante de mim,
observo as paredes cobertas
de livros, estantes, e mesmo,
mesmo na parede mais vazia
a memória carregada pela tinta
branco-risada.

Neste silêncio, denso,
que não posso pegar,
mas sinto à minha volta
desafiando-me a dizer palavra.
Não ouso, eis que quebro.
No meu quebrar, sutil
mantenho íntegro algo.

Silêncio.
Na profundeza de minha mente
lembro da risada, da voz,
do toque, do calor,
e dos planos.

Ah, a saudade que sinto.

Na casa vazia que habito
pacientemente aguardo
pois sei que aquele sorriso,
aquele toque, aquele calor,
voltará, para continuar
comigo
a fazer do silêncio um estranho
e dessa casa
lar.



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Onishiroi Shonin

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Silhueta

Foi perfeito aquele instante
logo depois do incrível.
Não, mais que incrível, muito mais,
ainda estamos procurando
a palavra. Inventando.

Naquele instante perfeito,
eu, que via somente
a negra silhueta da sua forma
contra a fraca luz vinda de fora...
o contorno do seu corpo, lindo
e seus cabelos, moldura do perfil
que, lábios separados, apenas
respirava. Ofegava.
Sentia.

Caído, mais que deitado
nada eu era além de algo
que admirava
seu desenho, nossa arte.

Logo após o incrível, o mais que incrível,
aquele silencioso instante na escuridão
foi perfeito.



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Onishiroi Shonin

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Ágatha

Salvamos a alma dela.

Afinal, evitamos que ela
tivesse acesso a conteúdo
assim declarado pornográfico
porque dois homens se beijavam.
Também evitamos ela de ser.

Fazia ballet e falava inglês.
Precisou defender o avô
que ela fazia essas coisas
coisa de branco do asfalto
para que soubessem que era cidadã,
porque os livros de escola
e os sapatos de ballet na mochila
podiam ser confundidos como
foi um dia o martelo de um pedreiro
ou, quem sabe, de um carpinteiro,
com algo que não era uma bíblia.

Salvamos a alma dela.

Impedimos ela de se tornar
uma transgressora, como esperam
que todo preto, pobre e favelado
se torne um dia.

Mas fazia ballet e falava inglês.

Não salvamos ela, uma pena,
do tiro de fuzil

do policial em auto-defesa
do traficante em auto-defesa
do helicóptero em auto-defesa
da sociedade que esqueceu ser social.
Ser feita de gente.

Salvamos a alma dela.



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Onishiroi Shonin

domingo, 22 de setembro de 2019

Porque sim

Um dia foi um beijo
roubado de forma inocente.
Pensamos que seria somente
isso.

Em outro um abraço
um passeio de mãos dadas
e um sorvete num dia frio.
Só porque sim.

Outro dia arrumamos o quarto
sem nenhum bom motivo.
Só estava tarde e decidimos
fazer isso juntos.
Só porque sim.

Antes de sabermos
foram planos e sonhos e
estávamos arrumando uma vida
juntos.

Só porque sim.


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Onishiroi Shonin

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Sistema

Todo dia, tira a roupa social
do cabide, e coloca sobre si.
Torna-se aquilo, sem ser.

A alma, esta tira de si
e pendura no armário.
Não se usa isso aonde vai.

Não é que não se sorria.
Nem que não haja alegria.
Mas essa aparência de vida
é acidental, um erro no sistema.

O sistema é duro, é frio.
Não há espaço para gente
para a vida, para a alma.

Faz-se o que tem que ser feito,
sem lealdades, sem orgulho,
sem alma.

De segunda a sexta, as vezes mais
deixa de viver, para obter
o que acha necessário para manter.

Deixa-se de ser,
para viver.

O sistema processa, o sistema formata.

Todo dia, deixa a alma pendurada
e a olha como estranha
sem sentir nada.


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Onishiroi Shonin

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Desde que você chegou

Me arrumei como quem vai lhe ver
mesmo sabendo que hoje o dia é sem você.
Eu poderia culpar o hábito, se mentisse,
mas nunca fui assim, não antes.

Só ocorre que, com você em minha vida
não tenho aquela estúpida mania
de falsear um eu melhor que o dia-a-dia
quando estou em sua companhia.

Não.
Desde que você chegou, a cada novo amanhecer
tento ser um pouco melhor que ao anoitecer.

Então a casa sempre limpa,
o corpo saudável
a mente em harmonia
o sorriso amável.

Todo momento, mesmo a solitária
e para alguns tenebrosa segunda-feira
sou o meu melhor, mesmo se só,
para você.


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Onishiroi Shonin

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

A cachoeira

Como água que salta da pedra
libertou-se de tudo que não era
e assumiu a forma de que é
sendo, finalmente, si.

Despiu-se sobre o mundo
das correntes, ferro e tecido
mas não sua vaidade.
Ah, sua vaidade!
Desta municiou-se,
dignificou-se.

Deitada como leito de rio
sinuosa e reta, curvilínea línea
se expôs e foi, em foto movimento,
um eterno constante momento.

Do mundo que a admirou
sem nem mesmo abrir os olhos
com a beleza que sabia que era
as bocas calou.


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Onishiroi Shonin

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Sister Tracy

Eu era jovem quando ouvi
Tracy Chapman cantando só
que de nada adiantava chamar
a polícia.

Que eles nada podiam fazer.
Nada, para em casa proteger
a esposa da fúria covarde
da cega ignorância
da estupidez violenta
do abuso doméstico.

Eu cresci para ouvir mais
e mais e mais outra vez
um lamento em angústia
uma história de abuso
um grito de dor
uma vida.

Eu ainda ouço Tracy Chapman
me lembrando que de nada adianta
chamar a polícia.

Ah Tracy, quem dera, quem dera.
Se de nada eles fazem
contra a violência surda
com pressa respondem
ocupando suas mãos
com os livros que poderiam
interromper um dia a cegueira
abrir a boca da voz muda
e fazer desnecessária
a própria polícia.

A violência continua
mas agora, ao menos
não temos mais que nos preocupar
com livros.


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Onishiroi Shonin

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Nós, um poema

A língua dança em tua carne
versos que não precisam de rima
de forma, versos de vulgaridade.

Teus dentes em mim que grito
teu nome em canto e poesia
da arte que não vejo, sinto.

Nós, um impulso dionisíaco
compondo, sendo poema
de dedos, de unhas, do magnífico.

Nosso êxtase, privado recital
de dois que um só ao compor
no corpo marcas de posse, sinal.


Liberto, meu espírito voa
ao lado do teu.
Nós, poetas.
Em minh'alma,
teu verso ainda ecoa.


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Onishiroi Shonin

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Witzel comemorando uma morte

Witzel comemorando uma morte.

Algumas horas de tensão
de pessoas sob ameaça
vias interditadas
e uma vida terminada.

Witzel comemorando uma morte.

Trânsito fechado, e alguns
só querendo saber quando acabava
para chegar num trabalho tão
tão longe, impossivelmente distante.

Witzel comemorando uma morte.

Seis disparos para resolver
o que não tentaram com educação
o que não tentaram com diálogo
o que não tentaram, nunca tentarão.

Witzel comemorando uma morte.

Porque o que o estado abandonou
perdeu o direito de ser gente
de ser humano, de ser vivo.
É para sumir, com disparo na cabecinha.

Witzel comemorando uma morte.
Witzel comemorando uma morte.
Witzel comemorando uma morte.

Parece pouco agora, parece nada
disparar um punhado de palavras
contra as seis balas que amanhã
ou depois, ou depois
podem ser a minha morte
na hora e lugar errados.

Witzel comemorando minha morte.
Witzel comemorando sua morte.
Witzel comemorando nossa morte.


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Onishiroi Shonin

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Antes da chuva

O dia acordou branco
como se coberto de neve
mas era somente a nuvem
aquela nuvem sem graça
de que vai vir chuva
mas não ainda.

O horizonte cinza promete.
O vento sopra contra, tentando
convencer quem anda a
voltar
desistir
largar
deitar, rolar, sumir.

No asfalto seco da chuva que não caiu
ainda
contra o vento
e rumo o horizonte turbulento

caminho.


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Onishiroi Shonin

domingo, 18 de agosto de 2019

No mar da cidade, um poema

Tinha beleza o mar daquela cidade
aonde a criança brincava na onda
e em pé sobre a pedra que aponta
o ócio balançava numa vara de pesca.

Uma vela empurrava um pequeno barco
que circundava o imenso petroleiro
que se afastava da metálica plataforma
e sua coluna de escuridão contra o céu azul.

Alguém ouviu um piano
com batida de hip-hop.
As pedras ainda se erguem montanhas
redondas, acariciando o céu
que o vidro que se lança alto arranha.

Os sabiás cantam no vento
sem saber a diferença
entre a palmeira e um poste.

Tinha beleza o mar daquela cidade.


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Onishiroi Shonin

sábado, 17 de agosto de 2019

Queria ela

Queria ela, mais um dia
a simplicidade e a leveza
de uma saia que o vento leva
a sandália que nem pesa
e a camisa de algodão branca
alva, livre, leve

e sem sutiã.

Queria ela, uma vez
ser pele e criança, simples.
Ser ela, livre, sem
peso, sem pensar, sem
olhar para trás

e sem sutiã.

Queria ela, mas
quem a olha tão leve
vê não pele, não criança,
vê um corpo, um pedaço de carne
nos olhos pesados de um mundo errado
a leveza é mal entendida, ganha peso
ganha nomes
ganha sons
ganha intenções
porque, porque tão simplesmente ela é

e sem sutiã.

Queria ela,
não ter que ser daquele jeito.
Manteve a saia, a sandália e
mais um dia, todo dia
metafisicamente queimou o sutiã.
Ao invés de leveza, de pele
de ser criança
deixou correr aço em suas veias
gelo em seu olhar e peso
peso, tanto peso
em cada passo, cada andar.

Armou-se quando queria vestir-se
enfrentou quando queria ser
e atravessou o mundo
dura mulher, pedra coração
através do qual queria tão simplesmente
andar.

Queria ela,
não ter que todo dia, uma vez mais
queimar um sutiã
na esperança somente de que
um dia
entendessem o que representava.

Queria ela,
ao livrar-se da corrente
não tornar-se mais pesada, mais presa
mais enfrentada. Encarada. Julgada.

Queria ela
ser leve, ser pele, ser criança.
Talvez sorrir

e sem sutiã.


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Onishiroi Shonin

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Em bangu

Em bangu não tem o leblon presente
o amigão da vizinhança de bicicleta.
Mas tem o preto e branco e azul
cheio de pontas para todo lado.

Soube que aconteceu mais uma vez
e um traficante perigoso foi abatido
com perigosos cadernos e livros
sendo encontrados dentro da mochila.

Soube que aconteceu mais uma vez
e uma mãe foi atingida, não se sabe por quem.
O filho também, mas esse a polícia
disse que ia ser traficante um dia.

Em bangu não tem o leblon presente
com armas não letais e viaturas brancas.
Tem somente o carro preto, a bala rápida
o gatilho solto, a vida de baixo valor

Amanhã é outro dia, mais um dia.
O luto infelizmente tem que passar.
Temos que levantar, ir a luta
e levantar bem alto a bíblia
para que não seja confundida também
com um caderno escolar.



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Onishiroi Shonin

domingo, 11 de agosto de 2019

A maior de todas

Foi uma poetisa que me disse
que poemas deviam ser sobre coisas grandes.
Importantes.

Eu tentei.
Escrevi sobre a rosa atômica e a de barro.
Escrevi sobre filosofia, sobre política
e sobre poesia.
Mas tudo isso pareceu pequeno.
Irrelevante.

A coisa maior que me faz escrever...
a maior de todas que quero em palavras

é a garota de cachos tão grandes
com o olhar profundo que me paralisa
mas me vê inteiro e me derrete
de mãos tão lindas, dedos que quero
entrelaçados nos meus, ouvindo a voz
que sussurra que me ama.

A mulher de versos tão perfeitos
de caos tão puro, coração tão grande,
boca tão gostosa, unhas tão intensas.

Me perdoem quem esperava
versos sobre o mundo, sobre o pensar.

Não há nada mais tão grande, tão maior
quanto ela
para meu verso.


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Onishiroi Shonin

sábado, 10 de agosto de 2019

A escolha

Eu me preparei, cuidei.

Nas coisas bobas, triviais.
Fiz as unhas, cortei pelos,
arrumei e limpei a casa.

Nas coisas simples, da vida.
Liberei minha agenda, organizei
para que tudo estivesse livre.

Nas coisas complexas, de mim.
Cuidei da mente, do corpo,
dormi bem, fiquei feliz.

Nas coisas mais importantes, supremas...
escolhi você.

Por isso naquela manhã
sentei-me na janela
olhando o que ninguém mais via.

No horizonte invisível
carregava minha promessa
de esperar você.

Todos os dias
um mesmo ritual.

Talvez, talvez,
um dia

seja o dia.


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Onishiroi Shonin

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Beija-me

Beija-me
enquanto nossos lábios ainda
estão quentes da promessa
de uma só vida.

Beija-me
enquanto nossas palavras ecoam
o amor entregue sem culpa
sem medo, sem restrição.

Beija-me
enquanto nossas bocas retém o sabor
do vinho que bebemos, do sangue
da mordida, do desejo.

Beija-me
enquanto nossos dedos entrelaçados
nossos corpos quentes
nossa respiração ofegante.

Beija-me!
Beija-me enquanto brilha o sol.
Beija-me enquanto não vem o vento
trazer a noite fria
e o fim do nosso tempo.

Beija-me
enquanto podemos, enquanto...


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Onishiroi Shonin

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Atrás dos olhos castanhos

Ela me deu o que nunca pedi
ao enxergar em mim o que eu
podia ser, antes de conceber
e com os olhos, na minha alma pedra
esculpir tudo que havia em mim
tirando tudo que eu não era.

Eu dei de volta o que podia
ao escrever o verso que achei
dentro do espírito que encontrei
nos olhos que me enxergavam
mais do que eu mesmo
os versos que ela era.
Os versos que ela me deu.

No objetivo e material, quem olhava
via muito, muito pouco, o trivial.
Café da manhã, um passeio
um pé que se esquenta no meio da noite,
ligações de dois minutos para dizer
eu te amo.

Abaixo da superfície,
bem no fundo de nossos olhares
havia um mundo
havia arte
havia tudo que nós.


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Onishiroi Shonin

quarta-feira, 31 de julho de 2019

Tudo que pode ser

Existe uma casa, num lugar distante
com um pequeno cercado de madeira
e um portão simples, quase infantil.

Chegando nela, existe um jardim
de grama verde e trilha de pedrinhas
tão convidativo que dá vontade de deitar.

No jardim há uma árvore da qual
um balanço ginga sozinho, sempre
esperando sua criança, sua dona.

Um canteiro, pertinho da casa
coberto de rosas brancas mostra
o cuidado de um jardineiro dedicado.

Os animais de estimação virão ver
a visita que se aproxima em alegria
e correr e cheirar e latir e miar.

Dentro da casa, numa cadeira de balanço
perto da lareira, com um livro na mão
permanece, sempre a espera, um marinheiro.

Calmo, sereno e paciente, ele aguarda
a casa, num distante futuro sonhado
tornar-se, finalmente

lar.


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Onishiroi Shonin

terça-feira, 23 de julho de 2019

Cabe uma penteadeira

Juntos, nós pintamos as paredes.
A sala ficou melhor que a cozinha.
Quando chegamos nela já sabíamos
o que diabos estávamos fazendo.
Rimos um bocado, acho que ninguém mais
tem uma sala pintada de branco-risada.

Colocamos um sofá para dois.
Você escolheu a cor e tecido
um que o gato não consegue arranhar.
Montei a cama, e os móveis
da cozinha, do quarto, da sala.
Tenho uma marca na mão
de todos os cento e doze parafusos.

Penduramos alguns quadros
e ganhamos um elefante.
Eu chamei de mitologia
mas nunca reclamei.

Nós construímos de um lugar
juntos
um lar.


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Onishiroi Shonin

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Lençóis dobrados

A cama está arrumada.
Lençóis dobrados,
travesseiros posicionados.

Tudo no mais perfeito lugar.

Parecia um erro.
A cama já esteve bagunçada,
com a capa saindo
lençóis pelo chão
e os travesseiros sabe se lá
aonde.

A cama bagunçada
tão convidativa.
Tão quente.

A cama está arrumada
e fria.

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Onishiroi Shonin

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Noite de gala

Dizem que a noite todos os gatos
são pardos.
Não é o que parece aqui.
Na noite, cheia de dourado
todos são brancos, muito brancos.
Eu mesmo, em minha pele parda
debaixo desse terno, gravata
e camisa de abotoadura
me sinto branco.

Dizem que a noite todos os gatos
são pardos.
Talvez isso fosse bom.
Não aqui, aqui ninguém quer ser
pardo.
No canto de olho percebem o movimento
da mão negra, da pele escura,
que segura a bandeja, os copos.
Mas os gatos, são todos brancos.
Para eles, sou da cor da minha camisa
tão branca, tão alva.

Dizem que a noite todos os gatos
são pardos.
Envergonho-me de não me sentir assim hoje.
Nesta noite, negra e dourada
me sinto incomodamente
branco.

Meu sangue é da cor da minha gravata.
No vento, minha pele quente
não sente frio.

Dizem que a noite todos os gatos
são pardos.

Quem me dera.


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Onishiroi Shonin

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Aguaceiro

Ninguém viu o sol partir.
Na tarde chuvosa os olhos
ficam todos pesados, baixos.
De qualquer forma, no cinza
a manhã e o anoitecer se confundem.

Nem tudo fica cinza.
Os ternos continuam negros
e as árvores que ainda tem
ficam com as folhas mais verdes.
Mas os olhos, semicerrados
veem o chão e o asfalto molhado.

Uma criança brincando pula uma poça
esquecendo para trás seu guarda-chuva
cor de rosa.

Os olhos continuam pesados.
A mãe vê imprudência e doença
aonde o mundo lhe apresenta poesia.


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Onishiroi Shonin

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Toda noite

Toda noite
ela sobe a rua correndo.

Não porque tenha pressa de chegar
não há nada tão importante em casa.
Mas ela não quer ficar na rua
sozinha.

Toda noite
ela sobe a rua com medo.

Não porque seja uma rua perigosa
não especialmente perigosa.
Mas é uma rua, e é de noite,
e ela está só.

Toda noite
ela sobe a rua pensando.

Não que esteja filosofando
embora bem quisesse.
Mas questiona, cada vez,
se vai ser de novo desta vez.

Toda noite.
Torna-se normal na vida dela
o absurdo.

Alguém desentendido a vê
subindo a rua correndo
e assovia.

Toda noite.
Deveria ser diferente
mas é igual.

Toda noite.
Ela perde um pouco da fé.
A vida perde um pouco dela.

Toda noite
ela sobe a rua correndo.

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Onishiroi Shonin

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Lugar de fala

Ela é forte, tão forte
que você segue com os olhos quando passa,
e com os passos quando ouve a voz.

Ela é forte, toda ela,
de carne, osso, lágrimas e dor.
Ferida, quebrada, cansada,
costas curvadas, mas ereta.

Ela é forte, muito forte.
Nem ela sabe, em sua fragilidade,
que da voz tremida
da infância perdida
fez-se maior, em pétala,
espinho e aço.

Ela é forte. Tão forte.


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Onishiroi Shonin

domingo, 16 de junho de 2019

So far so good

Hoje o dia amanheceu bem.
O sol não estava forte demais
mas brilhava no céu azul.
Não acordei tarde ou atrasado
mas dormi bem a noite toda.

Os bens duráveis que desejo
tenho todos em bom estado.
Os consumíveis que dão vontade,
consumo.

A pessoa amada anda à meu lado
e não preciso trabalhar uma vez
que amo aquilo que faço.

E por isso que nessa manhã entrei em pânico
e cravei uma faca em minha mão
antes que corresse o risco de me
acomodar.



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Onishiroi Shonin

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Ressaca

Eu a sinto escorrendo entre meus dedos,
escapando, de minhas unhas afiadas,
enquanto a prendo
com meus dentes.

Mordo. Cada vez mais forte.
Minha boca sente o sabor metálico
mas ainda assim, lentamente
ela foge, como areia, grão
a grão.

As minhas mãos, o vértice
da cruel ampulheta, lenta,
inexorável.
Que não sou capaz de inverter
nem, com todo meu poder,
conter.

Eu a sinto escorrendo entre meus dedos.
Seu corpo, se desfaz, se esvai,
levada de mim, pelo vento.

Mas meus dentes, estes,
a prendem.

Mordo dela a alma.

A perco, quando o último grão
cai
e o vento
a leva.

Sinto o frio
a ausência
o fim da tempestade.

Mas os lábios, nestes
o sabor metálico
da eternidade.



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Onishiroi Shonin

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Noite, só

A noite que veio era mais.
Mais escura, mais fria, mais.
Pura e simplesmente, imensa.

Nenhuma coberta afastou o frio
e nenhuma luz iluminou as trevas.
A noite solitária era mais noite
que os artifícios vazios
que tentavam fugir dela.

A noite
era mais.

Só, na imensidão do quarto,
sobre a cama gigante,
sob o manto da mais noite,
estendi a mão ao lado
e tateei o vazio do seu lugar.

O seu lugar, que não é mais meu,
e que, vazio, torna meu mundo
o da noite mais noite
do frio mais frio
da escuridão mais escura.


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Onishiroi Shonin

terça-feira, 4 de junho de 2019

Sala vazia

As pessoas não vieram por medo da chuva.
Justo, afinal, a última chuva...
levou terra, levou pedra, levou vida.

As pessoas que desviaram o rio
e tiraram do lugar a montanha
para fazer do pântano chão
não vieram.

As pessoas que saíram da caverna
desmontaram, moldaram a pedra
e fizeram suas torres, donde pela janela
veem as pistas traçadas sobre a terra
não vieram.

As pessoas que dominaram o mundo,
as pessoas que domaram o mundo,
não vieram
por medo da chuva.

A chuva, fina, sem culpa,
é.



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Onishiroi Shonin

sábado, 1 de junho de 2019

Remonta

Ela me disse que não sabia amar.
Que só sabia fazer quebrar
deixando em pedaços, espalhados,
ela e todos mais quebrados.

Engraçado, porque eu disse então
que amar também sabia eu não.
Mas mesmo assim queria tentar
se não der certo, remontar.

Ela acha que não pode quebrar
não é isso que ela evita arriscar.
Ela acha que já está despedaçada
um brinquedo, somente, quebrada.

O medo dela é quebrar meus dedos
que insistem, gentis, cheios
de carinho, juntar cada parte
dela e minha, numa obra de arte.

Eu disse que não sabia amar para ela.
Mas que eu queria a experiência singela
de tentar, nós dois, corpo e mente,
e, quem sabe, sermos nós, insistentemente,

um eterno remontar.


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Onishiroi Shonin

sábado, 25 de maio de 2019

O centro mudou

Se você olhar para cima,
caso você seja desses,
tem ainda uma águia de bronze
no topo de um prédio.

Prédio. Palácio.
Com três andares, não é mais sobrado.

Ainda há sobrados,
e travessas e igrejas e sebos.

E há chinas e avenidas e ternos.

Continua corrido, um pouco mais
desbotado...

O que mudou é que,
na correria,
não se olha mais para cima.

A águia de bronze não liga.


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Onishiroi Shonin

terça-feira, 21 de maio de 2019

RESISTÊNCIA

Eu grito: Resistir!
em frente ao muro de preto-luto.
Palavras, branco-bastão
anunciam que ainda se sobrevive,
por pouco, por aparelhos.

Eu grito: Resistir!
nas ruas, minha voz entre muitas,
pedindo, implorando, cantando, clamando,
desesperando,
para que não, como anunciado,
desliguem os aparelhos.

Eu grito: Resistir!
como estamos resistindo desde...
desde que lembro.
Nós, jovens e velhos, partes
de um corpo, em eterno desmonte.

Porque morrer... nós recusamos.
Então resistimos.


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Onishiroi Shonin

sábado, 18 de maio de 2019

Dela

Ela guardou o poema
que tinha o nome dela.

O primeiro
o segundo
e todos os outros.

Bonito
e bobo.

Porque o amor é bonito,
mais do que é lindo,
e bobo.

Ah, o amor não é bobo
mas deixa a gente.

Bobo é
guardar o poema
com o nome dela.

Bobo.

Todos os poemas são dela.


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Onishiroi Shonin

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Frente fria

Finalmente veio a chuva.
Não uma tempestade,
só aquela chuva fria.
Ah, sim.
Fez frio, finalmente.

Tanta gente perguntava
cadê o frio que não chega.
Afinal, é outono.
Parece errado fazer sol, calor
enquanto tudo despedaça e cai.

Fez frio, e choveu,
como tanta gente queria.
Nada muito emocionante,
sem a intensidade da chuva de verão,
da tempestade.

Só a chuva mesmo.

Fui a rua, olhar o mar.
Me perguntava, tremendo,
porque ninguém mais estava lá
sorrindo de frio na chuva.

Não que eu sorrisse.

Afinal, era outono.
Parece errado sorrir,
enquanto despedaço e caio.


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Onishiroi Shonin

terça-feira, 14 de maio de 2019

Logo ali

O fim de semana foi bom.
Bom, mas não perfeito.

Andei pelo mundo como avisei que faria.
Foi bom estar fora do lar
mas me sentir em casa.

Encontrei pessoas queridas
contamos e vivemos belas histórias.
Apreciei um belo gramado, tão verde
mas não me deitei, pareceu errado.

Me cuidei direitinho
não exagerei muito.
Descansei um pouco
para ver outra semana.

O fim de semana foi bom.
Bom, mas não perfeito,
porque estou te contando
o que deveria comigo viver.


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Onishiroi Shonin

segunda-feira, 13 de maio de 2019

De dentro da jaula

Parecia um feriado
por conta das nuvens cinza
e dos olhares descansados
dos andares despreocupados.

Mas era dia útil
e era segunda, de todas elas.

Parecia um bom dia
para não fazer nada, ficar...
mas como toda segunda,
as obrigações tiraram o sono
forçaram o banho, a roupa,
o caminho, a seriedade.

Parecia um feriado.

Por isso, no meio da dureza
do dia de concreto e asfalto
sussurrei bom dia na janela do mundo
para que, talvez pelo caos
quem sabe? Do vento
você ouvisse minha voz.


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Onishiroi Shonin

domingo, 12 de maio de 2019

Cachos dourados

O verão veio fora de época
ao menos para mim.
Após tanto tempo de frio
surgiu, súbito, um dia quente,
e era verão.

Aproveitei, a minha maneira.
Caminhei sob o sol
paquerei as nuvens
e mesmo quando dentro de casa
saboreei cada intenso momento
calor.

Foi o verão com o sol
mais dourado
mais belo.

Até que veio um sábado
e, sem graça,
trouxe o frio de volta,
me lembrando que era,
afinal,
outono.

Outono, sempre do seu jeito.
Jogando pedaços de mim pelo chão.


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Onishiroi Shonin

terça-feira, 23 de abril de 2019

Puro caos

No cair da noite manifestamos
calma, mas desordenadamente,
nossos mais naturais impulsos.

Tiramos nossa roupa com as mãos
e a roupa de cama com os corpos.
Tiramos da mente, um do outro
toda razão.
No momento mais escuro da noite
fizemos nossa própria luz
e vimos, um no outro,
sentido.

Quando o sol veio,
tão depois,
dobramos os lençóis.


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Onishiroi Shonin

domingo, 21 de abril de 2019

A praia branca

O dia está tão lindo
que os autoproclamados locais
tiram foto com o sol.

Como se ele não estivesse sempre ali.

Os pais brincam com as crianças
na areia fofa, no mar calmo.

Nenhuma preocupação,
nenhum temor,
sob as barracas amplas,
pos aqui, nesta aqui,
a caravana não vem.

Os homens mal camuflados
com suas siglas de consoantes
garantem isso.

O dia está tão lindo...


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Onishiroi Shonin

quarta-feira, 10 de abril de 2019

As águas de Abril

Nós tentamos sorrir para o tempo
mas não deu tempo.
Veio a chuva forte
e acabou com a mentira de um ano
inteiro.

Uma chuva atípica, incomum
daquelas que acontecem quase
três vezes por ano
na mesma estação.

Nós tentamos fugir, correr do tempo
mas não deu tempo.
Veio a chuva forte
na pedra mole
e a derrubou.

Uma chuva atípica, como sempre.

E eu, que queria escrever poemas
de alegria, risos e amor
escrevo mais um poema trágico
datado, que perderá sentido
quando esquecida a tragédia.

Ao menos, até o ano que vem.


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Onishiroi Shonin

sábado, 6 de abril de 2019

Atrito

Porque quando movo os olhos
da esquerda para a direita
eles perdem velocidade
ao passarem por você.

Porque quando ando, atravessando
a invisível resistência do ar
paro, torno-me imóvel
quando passo por você.

Porque a constante vibração
das palavras múltiplas humanas
prende-se em meus sentidos
quando ditas por você.

Porque minha mente caótica
no contínuo devir de pensamentos
foca-se. Em uma única ideia.

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Onishiroi Shonin

terça-feira, 2 de abril de 2019

Uma prosa sobre o tempo

Escrever poemas é difícil. Já escrevi sobre isso em poemas. Mas não em prosa. E, fato, eu prefiro em verso. Mas as vezes é preciso prosear. Tem coisas que não podem ser ditas em verso, ou são, ao menos, difíceis. A prosa tem certa clareza e objetividade (quando não é Nietzsche que escreve) que a poesia, habitualmente, não tem (exceções se aplicam, inclusive minhas). E eis que tem algumas coisas sobre escrever poemas que tenho tido vontade de falar... mas apesar de ter muitos versos sobre, achei que faz sentido fazer uma prosa. Principalmente para quem me fala que quer escrever ou que escreve. Ou só tem alguma curiosidade sobre como funciona minha louca louca mente.
Eu comecei a escrever em 2001. Como a maioria dos poetas iniciantes, guardei quase tudo escondido do mundo. Mas um dia minha professora de redação viu. E disse que gostou. E a professora de arte. E os professores de história. E a garota que eu gostava. E... vou te ser sincero, quando leio esses primeiros poemas, eu agradeço os seres humanos serem capazes de mentir para agradar os outros, porque eram poemas horríveis. Mas essas pessoas me estimularam a continuar, e a mostrar o que fazia. E o que se segue disso... são coisas que eu gostaria muito de saber quando comecei, e só agora, uma vida depois, começo a entender. E são coisas que acho que cabem dizer.
Eu achava que poemas eram sobre palavras, vocabulário, métrica, rimas. Que poema era soneto. Ou epopeias. Hai-kais. Vinícius, Shakespeare, Pessoa. E.... em parte, é. Mas nada disso faz um poeta, ou, melhor, um poeta não faz nada disso. Escrever um poema encaixando palavras e sons é... possível. Mas não faz um poema, nem faz de quem faz um poeta. Não mais do que empilhar tijolos faria de um engenheiro um artista. Forma é importante. Mas arte... arte é um outro treco.
A maior parte de escrever um poema, ao menos para mim, é “olhar” o mundo ao meu redor com “olhos de poeta”. Observar o mundo e não somente tropeçar em, mas ativamente procurar versos. Assim, sem que eu percebesse, passei de uma criança que escrevia sobre o tempo, o amor e a felicidade, para uma criança um pouco mais esticada que escrevia sobre rosas que cresciam no asfalto, sobre as luzes do trânsito, o ar-condicionado que parava de funcionar... e sobre o tempo, o amor e a felicidade.
E sobre papel. Eu tenho muitos poemas sobre papel.
Essa forma de olhar para o mundo é... algo complexo. Se me perguntarem como aprendi, não sei dizer. Se me pedissem para ensinar, não saberia como. Mas eu sei que pode ser praticado. É como o olhar filosófico. Se você decidir que vai fazer isso, e se mantiver fazendo continuamente, eventualmente será difícil parar de fazer. E então os poemas surgem das coisas mais triviais e mais incríveis, como uma hora que a luz foi apagada e viu-se o reflexo de outra janela, ou de quando o trem bateu no poste. Se você fizer isso... o resto é fácil. Mas ISSO é difícil. Bem difícil. Difícil o suficiente para que seja algo como atravessar o impossível.
E, por isso mesmo, escrever é importante. Porque a experiência de ver essa coisa maravilhosa no trivial é extasiante. E a arte é uma forma de trazer essa experiência de volta para quem não a teve. E, frequentemente, com resultados diferentes para cada um. E que bom, adoro quando veem nos meus poemas algo que eu não tinha visto. Torna eles vivos, reais. Mais reais que eu mesmo talvez.
Mas... escrever é difícil. Quando comecei esse blogue em 2013 eu fiz, ao longo do ano, 53 publicações. Nem todas poemas. Em 2014 foram 29, depois 25 em 2015 e somente 11 em 2016.
E então eu parei. Não parei somente de publicar. Eu parei de escrever. Eu simplesmente não conseguia “ver”. Me deixei ser arrastado pelo prático, pelo necessário, pelo concreto. Quando colocava uns versos quaisquer no papel, achava-os horríveis e abandonava a ideia. À quem me perguntava, dizia que o poeta estava morto, e que talvez nunca mais escrevesse. E falava de outra coisa, como política e economia.
Então... então eu fui em um show do Nando Reis na rua. E fiquei na cara dele. E ele cantou, uma das primeiras vezes que o fez pelo que sei, “Rock ‘n’ Roll”. E daí... daí que voltei a ver as letras de Caetano e de Chico, a reler meus poetas favoritos (obrigado Fabio Rocha), meus próprios poemas favoritos e... a escrever poemas. E de uns tempos para cá, escrevo quase todo dia. Não, eu não publico tudo. Eu demoro para achar bom o que escrevo.
Para que então esse discurso longo e errático. Bem, porque também voltei a conversar com pessoas que escrevem. E essas pessoas me dizem que o que escrevo é bom, mas que tem tido dificuldade para escrever. Porque o mundo adulto é real para todos nós. E, como foi para mim, se veem deixando morrer dentro de si esses olhos que tudo veem no mundo.
Escreva. Se quiser escrever, escreva. Se não achar bom, escreva do mesmo jeito. E continue escrevendo.

Uma hora, os olhos se abrem, e torna-se impossível não ver. E aí dá para escrever até sobre política e economia.


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Onishiroi Shonin

Centro urbano

Mataram a grama
e cercaram as árvores.
Tiraram as cores do mundo
e "criaram" um bilhão para a tela.

Trocaram estrelas
por luzes de helicóptero
quando
(também)
mataram a noite.

No desespero da busca
por algo de natural e humano
tranquei-me no breu.

Entra pela janela uma luz,
mas não é da lua.
Somente a luz
de outra janela.


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Onishiroi Shonin

domingo, 24 de março de 2019

Você

Deitei mais uma vez meu coração
no leito de papel, em verso.
Admito, que meus dedos, lentos
estavam cansados das mesmas letras
do mesmo tema
do mesmo sangue.

Mas... mais uma vez.
Não foi escolha, foi tão simples...
uma folha de papel, uma garrafa de vinho
e um tanto de espaço vazio.

Uma poeta me disse, sem me olhar
que poemas deveriam ser profundos
deveriam ser grandes, deveriam ser sobre
Hiroshima. Ou Auschwitz.

Não nego que entendo, e tentei.
Até escrevi sobre a rosa cálida,
sobre o exílio e sobre a neve.

Mas poemas deveriam ser profundos,
deveriam ser grandes, deveriam ser sobre
você.

Mais uma vez, deitei meu coração
no leito de papel, em verso.

Se nada mais, talvez
talvez
nessa noite eu durma em paz.


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Onishiroi Shonin

quarta-feira, 20 de março de 2019

Vir a ser

Olho fixamente a folha branca.
Dizem-na branca, mas tem linhas azuis.
Dizem-na branca, mas talvez devesse ser
alva?
pela forma como é feita.

Olho fixamente a folha branca.
Procurando,
esperando?
as palavras em tinta preta caírem
surgirem?
brotarem?

Mordo a caneta
despejo a tinta
sem saber como
porque?

Nasce o caos
na ordem alva.


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Onishiroi Shonin

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Um poema sincero

A verdade é que não foi perfeito.
Claro, eu lembro da felicidade
e de ter feito você sorrir.
Mas a verdade, a verdade é essa.

Eu era falho, e errei muito.
Se algo, se fiz certo algo
foi quando prometi não poder
prometer nunca lhe tirar lágrima.

Eu sabia, ao menos, que era falho.

Ao menos isso. Pois de resto...

Houve alegria. E amor.
Ainda hoje minha memória por
vezes
perdura sobrevoando um momento
um dia, uma semana, um mês
que pareceu perfeito.

Mas não foi perfeito.

A verdade é que eu quebrei tudo.
Acreditei que não eram falhas,
era aprendizado. Acreditei
que iria ficar melhor.
Que eu iria ser melhor.

Mas eu era falho. Tão falho
que acreditei não ter mais
como.

Assim quebrei o que era imperfeito.

Oh, céus. Como eu era falho.

Em minha loucura, minha imperfeição
não vi o que fazia.
Eu destruí a causa da lágrima
junto com a causa de cada sorriso.

A verdade é que não foi perfeito.
Mas havia felicidade,
e agora

não há nada.


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Onishiroi Shonin

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Desastre

Foram dias vermelhos
dias de desastre.

A água veio enfrentar o homem.
Veio também a terra
e o fogo.

Houve o inevitável
e o absolutamente evitável.

Até mesmo a fatídica piada pronta
aquela que está sempre ali
veio também.

No sábado, como sempre
o sol se ergueu languidamente
e fez praia.

Ainda havia luto, certo que sim
mas não dispensamos a praia.



______________ Onishiroi Shonin

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Rosa de barro

Rompeu a barragem.

Para alguns não houve sangue
somente números vermelhos da bolsa.

Para alguns não houve crime
somente o risco calculado, instável.

Para alguns não houve ajuda,
só política.

Não houve multa,
não houve nada.

Ah, mas houve, houve sim.
No mundo que os homens de terno não vêem
houve morte, houve dor, houve esquecimento
desaparecimento.
Houve lama.

Então não se esqueça,
da nossa rosa, a nossa
não-atômica,
rosa de barro, rosa de mata-rios,
não se esqueça, não se esqueça
da rosa de Mariana.

Como assim? Como assim?
Uma nova rosa?
Um novo jardim?

Mais, maior, pior e mais forte?


______________ Onishiroi Shonin

domingo, 6 de janeiro de 2019

Um acidente

Era para ser uma noite daquelas
meio esquecíveis, aleatórias.
Ao menos, assim tudo indicava
entre o cheiro de chuva e o calor
que eram para o verão, normais.

Eu estava quieto, calmo, só,
salvo do mesmo eterno amigo
companhia, uma garrafa de vinho.

Era para ser uma noite daquelas
que nem se chamam normais
pois esquece-se, perde-se,
apagam-se na memória, tão iguais.

Mordi o lábio inferior contudo.

De assalto, súbito me veio
o gosto, a dor, o cheiro
a memória do seu beijo.

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Onishiroi Shonin

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Uma nova era no Brasil

Talvez eu devesse abandonar o verso
render-me a forma bruta, disforme,
da palavra direta, atirada, disparada,
como quem faz do dedo metralhadora,
arma.

Talvez devesse aceitar que o mundo
mudou.
Seguiu adiante, aceitou, virou
algo mais duro, obtuso, ríspido.
Meio sem graça ainda que cômico,
ou desesperador.

Talvez também não seja para tanto
eu somente esteja exagerando,
e fosse mais fácil não parar
mas simplificar, talvez um pouco
mais simples
fique compreensível.
Talvez, se fosse algo assim

menino veste azul
menina veste rosa
Damares acha que lacrou
eu acho que só fala bosta.

Talvez... talvez assim.

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Onishiroi Shonin