sexta-feira, 20 de março de 2015

A morte do chinelo


Era um par de Havainas. Havaianas mesmo, do tempo em que era o chinelo mais comum do mundo. Meu primeiro par, ou, ao menos, o primeiro que consigo lembrar. Antes somente utilizava chinelos da Raider (não, não ganho jabá por isso. Ou com qualquer coisa deste blog aliás). Um carnaval, dez anos atrás, fui para mauá com um amigo e por alguma razão, levei quele par de havaianas. Na época, tinha ainda um símbolo da coca-cola nela, o que não foi a razão de escolhe-la (minha fonte de cafeína já era o café, mesmo nessa época), o fiz por ser uma que tinha uma alça para prender no pé, o que achei que seria prático no carnaval.

Devo ter demorado umas 24 horas para cortar a maldita alça. E passei depois uns bons dois ou três anos reclamando do chinelo sempre que o usava. Mas o tempo passou. A marca da coca-cola foi sumindo, a espuma foi amaciando com meu peso (o que, visto minha diminuta massa corporal, demorou um bocado), o formato do pé foi ficando definido na superfície... e aquela maldita superfície rugosa e escorregadia foi ficando cada vez mais lisa e, estranhamente, aderente. Era um chinelo com o qual se podia correr, ir a praia, andar de bicicleta e ainda chutar pessoas inconvenientes (não recomendo fazer isso com desconhecidos, melhores amigos fazem excelente material de chute para esse tipo de teste).

Ah. E as memórias. Não sei mais quantas vezes pisei na areia com aquele chinelo, para depois o carregar na mão enquanto corria. Ou quantas vezes passei horas sobre o asfalto quente e a sola dele não derreteu. Quantas poças de cerveja (e outros líquidos menos interessantes) foram pisadas... gostaria de ter a quilometragem registrada. Cabe lembrar que para mim, 10 km é uma distância perto para caminhar, e durante uns bons anos não me dei ao trabalho de trocar o chinelo. Aonde precisasse ser, aquele chinelo vagabundo e puído, já sem sinal de sua origem, iria comigo, por vezes jogado de forma descuidada e aleatória na mala ou na mochila caso fosse necessário (a vida me ensinou que é sempre bom ter um chinelo na mochila, mesmo se você tiver que ir à um lugar de sapatos sociais).

E então, eis que o chinelo arrebentou. Sem nenhum acidente ou sinal prévio, simplesmente, andando pela casa, ele desistiu de viver, como se chegasse ao limite de sua idade e seu tempo tivesse acabado. Um triste evento. Um fim indigno para um companheiro tão antigo. Mas tento lembrar das coisas positivas e seguir em frente. Afinal, ao longo desses anos acumulei uma incrível quantidade de chinelos nunca utilizados. Ao olhar tive a sensação de que eles se multiplicam espontaneamente. Não consigo me recordar da origem de nenhum deles. Escolho um, pensando no legado que ele herdará.

Na primeira pisada na rua penso que preferiria andar descalço. Sobre o asfalto quente. Com uns caquinhos de vidro para adicionar emoção. Três tropeços (que não entendi a origem), alguns escorregões (falei da superfície rugosa anti-aderente?) e uma queda quase fatal (assim como os gatos, o chinelo parece ter uma vontade de dobrar-se quando menos espero visando a dominação mundial) depois em um tempo de 10 minutos (!) de caminhada, descubro que me sinto velho demais para dispor do tempo e energia para reconstituir esse tipo de relação com um chinelo. É muito que preciso investir, e já tenho que investir meu tempo em relações com minha mulher, filha, colegas de trabalho e este laptop que adora descobrir novos problemas que precisam de correção. Infelizmente, me vejo obrigado a pendurar o (des)conforto de um par de chinelos no pé. É triste, mas preciso aceitar. Acabou. Foi um tempo bom, e pensarei neles nos dias de finados. So long, and thanks for all the fish.

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