A
atual crise ocasionada pela pandemia de COVID-19 despertou vários debates
acalorados pelo mundo. A sociedade, que já estava em um processo de descrença
na ciência e na imprensa tradicional, trouxe este debate para a superfície conforme
diferentes autoridades levantam argumentos e estudos sobre o tema. Um destes
debates que tem se intensificado circula ao redor de possíveis tratamentos para
as complicações geradas pelo vírus. Há quem defenda o uso de algumas substâncias,
notadamente a cloroquina/hidroxicloroquina, enquanto outros refutam. O objetivo
deste texto é, reduzindo a observação especificamente para este debate, apresentar
a razão pela qual existe a resistência ao uso destas substâncias e,
principalmente, explicar a diferença entre opinião verdadeira e conhecimento
científico.
Dentro
dos vários campos da filosofia, um do qual se ocuparam muitos pensadores ao
longo dos séculos é a teoria do conhecimento, ou epistemologia. A epistemologia
estuda o que é conhecimento, e o que se pode vir a saber, assim como a
possibilidade do mesmo. Não é o objetivo deste pequeno ensaio explicar
completamente tal tema, mas sim, focar-se em um tópico que foi apresentado já
por Platão em seus diálogos, a diferença entre opinião e conhecimento. Apesar
do tema surgir em mais de um texto do filósofo grego, creio ser no Mênon aonde
é mais claro a distinção entre estes dois conceitos. Distingue-se neste que
conhecimento é a opinião verdadeira quando proveniente de um cálculo de causa,
o que mais tarde se diria como “justificada”. Já a mera opinião, desprovida
deste cálculo e, portanto, injustificada, ocorre de maneira acidental. Então,
para usar um exemplo similar ao do diálogo, se duas pessoas desejam o caminho
para uma determinada cidade e um destes, sem nunca ter trilhado o caminho,
depara-se com uma bifurcação e escolhe aleatoriamente a direção, porventura
chegando ao seu destino, este terá se utilizado da opinião verdadeira. Sua
escolha não tinha nenhuma justificação, mas por chance, forneceu-lhe o
resultado esperado. Se outra pessoa percorre o mesmo caminho tendo em mãos um
mapa, deparado com esta bifurcação, irá poder consultar o caminho e escolher a direção
a seguir tendo uma justificativa para sua escolha. Um observador que se atente
somente ao final prático pode considerar que ambos tem o mesmo valor pois que
ambos alcançaram o destino pretendido. Talvez até mesmo acreditasse ser preferível
o que seguiu a opinião, já que teria possivelmente perdido menos tempo tentando
interpretar um mapa. Contudo, como exposto no diálogo por Mênon, “É menos proveitosa
a opinião verdadeira nesta medida, pelo menos, Sócrates: aquele que tem a
ciência sempre será bem sucedido, ao passo que aquele que tem a opinião correta
às vezes acertará, às vezes não.”
Considerando
isso e voltando ao nosso exemplo, imaginemos que ao invés de uma única
bifurcação no caminho houvesse várias mais. A cada bifurcação, a pessoa que não
tivesse conhecimento do caminho poderia acertar ou errar o caminho, bastando
errar uma única vez para que fosse parar em um lugar completamente diferente do
intendido. Sua chance de chegar ao seu destino, se por exemplo houvesse cinco
bifurcações, seria reduzida pela chance a três em cem. Há de se reconhecer que
uma pessoa com um mapa ainda pode errar. A interpretação de um mapa nem sempre
é precisa, e um mapa de qualidade inferior pode tornar a interpretação ainda mais
difícil. Mas, considerando que houvesse uma chance de 5% da pessoa errar cada bifurcação
com o mapa, o que já é uma chance de erro bem grande para um mapa, ainda
chegaria no lugar correto em 77 de 100 vezes, uma probabilidade vastamente
superior à da pessoa guiada pela opinião. Quanto mais trabalho fosse dedicado a
aperfeiçoar o mapa, melhor seria essa probabilidade. Por exemplo, uma mapa com
precisão de 98% já mudaria a probabilidade final de sucesso para 90%, enquanto
um mapa com 90% de precisão reduziria para 59%. Quanto mais bifurcações
houvesse no caminho, mais extremos os efeitos deste mapa.
Pode-se
aqui questionar a razão pela qual estou colocando uma chance de erro no mapa
quando em Mênon teria sido dito que quem tem a ciência sempre será bem
sucedido. Isto é posto pois que modernamente compreendemos que a precisão
absoluta do conhecimento é, se não totalmente impossível, extremamente difícil.
O objetivo do método científico é não alcançar algo incontestável (embora,
admita-se, existam os que tentam), mas reduzir a margem de erro. Por
exemplo, muitas pessoas são capazes de erguer uma parede de tijolos. Contudo,
quem tem mais estudo e prática tem uma chance menor de erguer uma parede que
caia sozinha, embora mesmo estes possam eventualmente cometer um erro.
Voltemos
afinal para o debate sobre o uso da cloroquina/hidroxicloroquina. Seu uso em
geral é defendido por médicos, como o Osmar Terra, e contestado por biólogos e
biomédicos, como o Átila Iamarino. Aqui preciso inserir um ponto que pode ser
complexo, mas é necessário. Médicos, em sua grande maioria, não tem formação
científica. O que desejo dizer com isso é que a maioria das graduações de
medicina, e mesmo as pós-graduações, não ensinam sobre métodos científicos e
sobre como realizar pesquisa. Essencialmente, não ensinam como produzir conhecimento.
Ensinam como utilizar o conhecimento. São graduações essencialmente
técnicas. E isto não é um problema em princípio. Visto a grande quantidade de
informações necessárias para o exercer da medicina, é de se valorizar o uso adequado
desse conhecimento que por si tem grande utilidade. Dentro do nosso exemplo, o
médico seria como alguém que aprendeu muito bem como ler um mapa de forma a não
se confundir com o mesmo, mas não aprendeu como desenhar um mapa eficiente. E,
habitualmente, na sociedade em que vivemos, as pesquisas médicas tem
participação de médicos, mas são conduzidas por especialistas de outras áreas,
como biólogos, biomédicos, químicos e outras, que por sua vez tem graduações focadas
na produção de conhecimento e nos métodos de pesquisa. Essas são as pessoas que
treinaram como fazer mapas.
O que
ocorre então com a cloroquina/hidroxicloroquina? Atualmente, não há um “mapa” para
estas substâncias em relação ao COVID-19. Temos alguns casos nos quais o uso
dela apresentou resultados, mas nenhuma pesquisa extensa dentro das regras
metodológicas normalmente utilizadas para a prescrição ampla de um medicamento.
Os casos que temos de sucesso ocorreram com pequenas quantidades de pessoas e
sem os devidos controles. Não temos como determinar, por exemplo, se foi efetivamente
estas substâncias que ofereceram resultados ou se foi somente a reação natural do
corpo, ou sua dose correta, ou os possíveis riscos colaterais. Essencialmente,
os casos em que ela foi bem sucedida são opinião verdadeira. É como se após
trilhar o caminho e alcançar o objetivo nosso viajante determinasse que seguir
pela esquerda na bifurcação sempre funcionará. E um observador casual pode acreditar
que ele está correto porque o nosso cientista está ainda tentando desenhar um
mapa para garantir a precisão do caminho, algo certamente mais demorado.
Contudo,
estamos falando de uma trilha que tem bifurcações incalculáveis, e que por vezes
a escolha do caminho errado leva a morte de um ser humano. As pessoas que estão
contestando o uso em larga escala destas substâncias não pedem que elas sejam
proibidas, mas somente que se realizem os testes necessários para que elas
possam ser usadas com segurança. Se os testes comprovarem sua eficácia, teremos
então conhecimento e poderemos utilizar as mesmas com tranquilidade. Mas se os
testes não comprovarem, o uso das mesmas incorrerá em riscos e custos desnecessários.
O que a comunidade científica defende não é a passividade, mas a pesquisa
destas e outras substâncias para a produção de conhecimento que nos permita
realmente garantir segurança no tratamento do vírus que hoje aflige o nosso
mundo.
Se
fosse para sair de casa e seguir em caminho a um destino cujo caminho
desconhecesse, consideraria irresponsável a pessoa que pediu um pouco de tempo
para consultar o google maps, ou a que saiu sem pista de como chegar lá? Fica a
pergunta.
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Onishiroi Shonin
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