Nem acabará
provavelmente. O que, pasmem, é a melhor notícia desde que ela começou. O
Brasil é um país democrático, sob um modelo de presidencialismo de coalizão.
Calma, sei que não está escrito na nossa constituição a palavra coalizão, mas neste
texto isso não é um palavrão.
Nosso
país não tem tradição democrática. Como resultado, frequentemente nossa noção
de democracia é, no melhor dos casos, vaga. E isso faz todo sentido porque,
além de termos uma democracia jovem, a maioria das relações pessoais não é
democrática. Alguns costumam chamar a democracia de “ditadura da maioria”.
Outros de “governo da maioria”, com quase o mesmo sentido.
Infelizmente,
ambas as definições são imprecisas.
Democracia
é governo do povo. E neste caso, por “povo” entende-se o conceito mais amplo de
povo que possa ser aplicado em uma nação. Isto é, TODO o povo. Um governo ou
ditadura da maioria seria, mal comparando, se Israel com seus 81% hebreus
decidissem que os 19% árabes (censo de 2006) não tem direito a voz ou voto.
Mas, como são democráticos, os árabes (por nota gente, árabe é um grupo étnico,
não uma religião, tá? E, nesse contexto, hebreus também, caso não saibam)
possuem voz, voto, representantes no parlamento (a Joint List, nome da “coligação” dos quatro maiores partidos
representantes dos árabes, possuem 13 das 120 cadeiras no “congresso” deles,
que é unicameral, cerca de 10,3%). Óbvio, a realidade é muito mais complexa e o
povo de Israel não se distingue em A ou B, mas serve para dar um exemplo
simplificado. Muito simplificado. Desculpa qualquer coisa.
Contudo,
novamente, no Brasil costuma-se entender democracia como ditadura da maioria. E
agora cabe descrever porque somos um presidencialismo de coalizão. Nosso
presidente não tem poderes corruptíveis. Ou, melhor dizendo, tem bastante
poder, até corruptível... mas outras instituições possuem bastante poder para
equilibrar. Se um presidente decide passar uma medida provisória sem nenhum
diálogo com o congresso ou com a população, o legislativo simplesmente pode ir
lá e derrubar isso. O presidente também pode tentar vetar algo colocado pelo
congresso. E se os dois ficarem de mau um com o outro, podem passar a vida
inteira um vetando o trabalho do outro e sem ir a lugar nenhum.
Para
trazer para um exemplo próximo da vida (sim, eu adoro exemplos), considere as
relações que costumam haver na sua vida. Se uma pessoa jovem e seus pais
precisam tomar uma decisão conjunta, o peso da vontade dos pais é muito mais
forte, podendo eles simplesmente ignorar a opinião do mais jovem, ou nem mesmo
consulta-lo. Em uma empresa, em uma escola, e na maioria das instituições, o
poder é exercido de forma similar, verticalizada, na qual o topo sempre tem o
poder decisório sem a necessidade de sequer consultar o que há abaixo. E as
pessoas costumam com esse hábito pensar que o governo funciona assim. Mas a
realidade é mais perto do que ocorre quando você e três amigos decidem pedir
uma pizza. Os quatro vão debater sabores, um vai oferecer argumentos para o
outro, algum vai ceder que não tenha o sabor que ele queria em troca de também
não ter Aliche que ele não come (eu conheço uma pessoa cuja pizza favorita é de
Aliche. Me diga se você também tem esse def... peculiaridade). No fim, será
pega uma pizza meio a meio que talvez não deixe ninguém ABSOLUTAMENTE feliz,
mas também não deixe ninguém ABSOLUTAMENTE infeliz.
A pizza
não é escolhida somente com o voto binário de cada um. As opiniões são jogadas
na mesa e trabalhadas. Frequentemente grupos muito heterogêneos demoram horas
para pedir uma pizza, grupos mais afinados o fazem com uma agilidade invejável.
E o presidencialismo de coalizão é mais similar a isso.
O
presidente não pode forçar a mão e fazer o que quer. Mesmo quando se tem uma
aparente “maioria” da câmara, essa maioria significa 42 senadores e 257
deputados (para maioria simples). Ou seja, mesmo que você tenha na composição
desse número seus 299 melhores amigos, deve ser difícil pedir uma pizza... e
tem que lembrar que a outra metade também vai pagar pela pizza e, graças a
questões maravilhosas como quórum mínimo, mesmo a minoria, se decidir bater o
pé, consegue tornar o governo um inferno (é tipo quando tem aquela pessoa que
bate o pé e diz que se vier uma pizza com camarão mesmo em uma fatia ele não
vai pagar porque é alérgico. Super apoio essa opção, eu não gosto de camarão).
Assim, o
presidente, para governar, é obrigado indiretamente a formar coalizões, grupos
que consigam chegar em consenso. Esse consenso normalmente tende a ser algo que
não era aquilo que a maioria queria, porque teve que conceder algo para a
minoria, nem o que a minoria queria, porque acaba tendo que aceitar algo da
maioria e, sim, a maioria fica com mais força para trazer esse meio termo mais
na sua direção. Mas daí a atropelar a minoria como se não tivesse voz,
simplesmente não consegue.
E nisso
eu chego ao futuro presidente. Eleito com 55% dos votos válidos (não vou entrar
no mérito de quantos isso realmente são de população e tal, a discussão sobre a
presença nos votos e tal fica para um outro texto), já nasce em uma população
dividida. Adicionalmente, apesar de, como muitos estão falando, ter na mesma
eleição uma inclusão de vários membros do seu partido e outros aliados na
câmara, não tem nisso, ainda, uma representação realmente forte. Muitos membros
eleitos e/ou aliados são pessoas que chegaram no partido na última hora, ou
aliados declarados de última hora. E você pode ter tido uma conexão muito legal
com aquela pessoa nova, mas só vai saber mesmo quando fizerem o teste de rachar
a conta do bar.
E nisto,
fico feliz pela eleição ainda ser um tópico de debate. Feliz porque, como um
país de pouca tradição democrática, o povo frequentemente esquece que também
faz parte do governo. Como somos nós que pagamos a pizza, mesmo quando não
estamos lá dando o voto do “sim/não” no sabor dela, quando fazemos barulho
contra ou a favor de algo, os votados são obrigados a lembrar que se irritarem
suficientemente a população simplesmente não estarão lá dentro na próxima
rodada. Isso foi algo interessante da eleição recente em que muitos membros do
legislativo não conseguiram reeleição, que antes era algo bem normal. Mostra
uma parte da evolução da memória, e da relevância de colocar o debate em voz
alta. Esse mesmo som ajuda a alterar detalhes numa dita legislação antes do
voto definitivo, ou mesmo sua aprovação.
A continuidade
do debate, seja você de direita ou de esquerda (nota mental, também preciso
falar sobre isso um dia) é um bom sinal, de que política pode vir a se tornar
uma parte da conversa do dia a dia fora das eleições e ser removida do rol de
coisas que não se debate, com o qual nunca concordei mesmo (filósofos não
perdem uma oportunidade de discutir política ou religião. E futebol é
política). Claro, como todo parto, todo início, o momento atual é difícil. O
debate ainda parece mais discussão e menos desenvolvimento de ideias, enquanto
ainda há muita gente querendo provar estar certa ou errada, ignorando que o
mundo não é binário. Mas é um começo. A oposição tem voz sim, e tem que ter, e
a posição tem que ouvir sim, e negociar sim. Para isso, é importante que todos
participem de forma propositiva, e não simplesmente fincando o pé. Se tiver uma
opinião, fale, seja ouvido, e ouça de volta. Talvez assim, daqui a dois anos,
no próximo pleito, as pessoas estejam mais treinadas no diálogo político e
tenhamos uma eleição mais saudável e menos... seja lá que nome damos para o que
aconteceu nas últimas semanas.
______________ Onishiroi Shonin
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