A recente onda de prisões e
escândalos feita pela Lava-Jato no Brasil levou uma série de pessoas a
levantarem bandeiras contra a corrupção. Nunca na história deste país tantos
casos de desvio de recursos públicos e privados fez-se tão evidente. Com isto,
existem aqueles que acreditam que nunca se roubou tanto na história, ou que até
mesmo acreditam que governos anteriores não foram tão corruptos (para quem
acredita nesta última premissa, uma informação assustadora: Os ovos de
chocolate que você recebeu não vieram do coelhinho da páscoa, sua mãe que
comprou). Contudo, para quem compreende que SEMPRE houve corrupção e, mais
especificamente, sempre houve crime na história da humanidade, cabe a pergunta:
Porque de repente tantos casos de corrupção apareceram na mídia?
Para começar, é necessário
observar que a tendência em questão é global. É fácil ver somente a lava-jato e
esquecer o que ocorre no mundo, mas uma pesquisa rápida demonstra que, nos anos
recentes (e por recentes digo um período de três a seis anos) houve
investigações bem sucedidas de casos de corrupção envolvendo políticos na França, Malásia,
Brasil, Itália, Fifa (sejamos honestos,
membros da Fifa contam como políticos), para listar alguns. O que mudou então
para que de uns poucos anos para cá tenha ocorrido uma explosão de
investigações de corrupção, e elas tenham cada vez mais terminado em prisões?
Para poder explicar isso terei de voltar alguns anos no tempo e falar sobre o
problema mais clássico e eterno de todo criminoso. A lavagem de dinheiro.
Lavagem de dinheiro é a parte mais
complexa de quase todo crime. Pense assim. Uma pessoa pode roubar um banco e,
da noite para o dia, passar de pobretão para milionário. Contudo, ter milhões
em dinheiro vivo dentro do armário só tem utilidade se você pode gastar esse
dinheiro. Se essa pessoa que vivia em um conjugado alugado repentinamente
compra uma cobertura no Leblon, imediatamente será levantada a questão da
origem do recurso. Se a pessoa não consegue dar uma explicação justa e legal
(legal juridicamente, não legal bacana), infere-se que o recurso tem origem
ilegal e investigações começam. Lavagem de dinheiro então é o processo de pegar
esse dinheiro do crime e dar a ele uma origem honesta e justificável. O termo “Lavagem
de dinheiro” tem origem não confirmada e quase pitoresca. Alguns alegam que
ainda no tempo em que quase toda transação era em notas e a falsificação de
notas ainda era uma coisa comum (hoje isso é mais raro, pois não só é muito
mais difícil a produção como as notas são muito mais controladas). Para evitar
que as notas fossem identificadas como falsas, seus “fabricantes” supostamente
colocavam as notas em máquinas de lavar roupa, pois após uma ou duas rodadas na
máquina as notas saíam com aparência de velhas e desgastadas. Como notas velhas
chamam menos atenção que as notas novinhas, elas eram mais fáceis de passar
desapercebidas (similar ao antigo processo de “grilagem” no Brasil para dar
validade a documentos falsos criando uma aparência de antigos). Outra hipótese,
já mais complexa, é a de que muitas redes criminosas utilizavam estabelecimentos
de lava-roupas com objetivo de criar origem para os recursos. Este caso já é
confirmado como real e cabe explicar como funciona.
A idéia é simples, mesmo que a
execução seja complexa. O criminoso, no próprio nome ou em nome de um laranja
(termo técnico para testa-de-ferro. Sério, é um termo técnico) abre uma loja
relativamente pequena, como uma lavanderia. Esse empreendimento é interessante
porque exige pouco investimento, apenas o aluguel de um local e a compra de
algumas máquinas de lavar, então o dito criminoso consegue fazer isso com uma
justificativa de que tinha esse pequeno recurso originalmente. A partir de
então a dita loja gera uma certa receita X. Contudo, como as transações
comerciais dessa loja ocorrem todas em dinheiro vivo, não existe um produto
final entregue que possa ser contabilizado nem registros claros, é fácil para o
dono desta loja declarar uma receita maior, digamos, 2X. Claro, ele pagará
impostos sobre esse valor, mas poderá incorporar parte daquele dinheiro ilegal
no seu patrimônio com uma origem “honesta” de forma que não gere suspeitas. Lavanderias
continuam sendo muito utilizadas para lavagem de dinheiro, mas igualmente são
várias outras atividades que utilizam principalmente dinheiro vivo em suas
transações e/ou não tenham um produto final tangível e contabilizável. Por
exemplo contrário, é praticamente impossível lavar dinheiro com uma indústria
de bebidas no Brasil, uma vez que é fácil controlar quantas garrafas de
determinada bebida podem ser produzidas com base nos insumos comprados pela
empresa, como também uma lei exige a instalação de máquinas que contam quantas
garrafas são produzidas de cada bebida, máquinas estas controladas pela Casa
da Moeda. Assim, inflar a receita de uma indústria de bebidas exige
adulterar e subornar muita gente, além de grande investimento inicial na
fábrica em si. Em paralelo, negócios muito simples para lavagem de dinheiro
envolvem táxis, aonde basta comprar alguns veículos (possivelmente usados e
possivelmente também de origem ilegal), algumas licenças de taxímetro e pronto.
Faz-se uma rede e, como muitas corridas de táxi ocorrem em dinheiro, é fácil
fingir corridas que não existiram. Outras formas simples são lava-jatos (como
ocorreu em Braking Bad), ourivesarias e joalherias, empresas de consultoria,
bingos e cassinos, botecos e assim por diante. Contudo, como falei, este
processo é absurdamente complexo, muito mais do que o próprio crime. Pense um
pouco e você poderá lembrar pelos filmes que já viu quantas histórias de criminosos
sendo presos envolvia esse processo. Scarface e Al Capone são alguns bons
exemplos. O processo de lavagem de dinheiro é complexo não só por seu custo e
processo, mas também porque, mesmo que seja executado corretamente, possui
limites. Em Breaking bad existe o momento no qual Heisenberg possui mais
dinheiro sujo do que poderia lavar em toda uma vida. Se cometesse o erro de
colocar números altos demais no lucro falso do lava-jato, despertaria suspeitas
e acabaria sendo pego. Similarmente, muitas investigações da operação lava-jato
chegaram em pessoas que tinham recursos muito elevados vindo de consultorias
que não tinham porte nem serviço para tal e, assim, despertaram atenção.
Ok, agora que conversamos sobre
o básico da lavagem de dinheiro, voltamos a pergunta: O que houve que, de três,
quatro anos para cá, tanta corrupção foi descoberta no mundo? Existe uma série
de motivos, que foram encadeando-se e gerando uma bola de neve. A primeira
causa, e que compõe uma constante eterna, é a simples digitalização do dinheiro
e a facilitação do controle. A cada dia menos dinheiro circula em moeda e
papel, e mais circula digitalmente. Se por um lado é fácil dizer que foram
recebidas mais notas em uma corrida de táxi, não é possível dizer que houve
mais pagamentos via cartão de crédito, uma vez que é fácil conferir se houve a
contra parte da operação. Igualmente, vários produtos e serviços possuem
pequenas taxas embutidas no seu controle que permitem saber o que foi produzido
ou vendido, como o imposto sobre cada garrafa que comentei antes neste texto.
Transações financeiras, de transferência entre contas até a venda de ações igualmente
gera informes, comunicados e controles que podem ser acessados pela receita,
alguns nem precisando de quebra de sigilo bancário. Este aumento de eficiência
do controle por si só já melhorou em muito a capacidade de rastrear eventos de
lavagem de dinheiro. Contudo, isto somente não seria o bastante. Muitos casos
que começam com esse processo de investigação de lavagem de dinheiro não eram
capazes de chegar ao crime original, apenas descobrindo dinheiro de origem
duvidosa, sem a confirmação final, e terminavam com multas inibitórias ou
pagamentos vultosos de imposto, mas sem outra conclusão. No máximo conseguiam
prender um testa-de-ferro, que no fim estava lá para isso mesmo, e raramente
conseguia se chegar à pessoa final que originou e recebeu estes recursos.
Curiosamente, um segundo ponto crucial
para o avanço do combate à corrupção foi... a crise. Da mesma forma que quando
uma pessoa encontra-se com falta de dinheiro ela busca notas embaixo do colchão
e lembra daquele empréstimo de cinco anos atrás para decidir cobrar e tentar
algum retorno, os países também começam a procurar dinheiro em todos os cantos.
Isso fomenta as atividades de recuperação de recursos, o que inclui a busca por
esse dinheiro sujo que passou pela máquina de lavar. Essa busca, contudo, mira
no volume grande, nos desvios milionários, e poucos são maiores do que os que
ocorrem em desvio de dinheiro público. Ao rastrear esse dinheiro, contudo,
sempre chegava-se ao mesmo impasse. Podia-se ter evidências de que uma pessoa
obteve dinheiro ilícito, mas, para confirmar, esse dinheiro precisava ser
rastreado. E ao rastrear o dinheiro destes “big players” normalmente
tropeçava-se nos mesmos problemas: Os paraísos fiscais. Paraísos fiscais são,
essencialmente, países ou territórios com leis muito fracas de controle de
recursos, ou mesmo inexistentes. Se no Brasil eu preciso preencher milhões de
formulários e ter dados comprovados em inúmeras fontes caso eu subitamente
surja com uma mala cheia de dinheiro querendo abrir uma conta no banco, nas
Bahamas, em Mônaco e na Suíça, não. Não só podia abrir essa conta como esses
lugares garantiam meu sigilo. Se um governo perguntasse em qualquer um desses
países se eu tinha conta e exigisse a quebra do meu sigilo fiscal eles
simplesmente negariam. Ponto. Entenda, eu poderia entrar em um banco suíço
baleado, com uma camisa na qual estivesse escrito “Mafioso e orgulhoso” e
armado (a arma ficaria na recepção, claro), depositar uma mala de dinheiro,
alguns diamantes e o título de uma casa, e nada seria me perguntado, desde que
eu pagasse os custos elevados deles. E... sim, os outros países reclamavam.
Porém, não podiam fazer muita coisa, afinal, esses paraísos fiscais são países
soberanos e donos das próprias leis. Aliás, não são chamados de paraísos a toa,
uma vez que esses lugares constituem países ricos que vivem basicamente de
bancos e turismo. Uma vez que milionários do mundo todo possuem seu dinheiro
nestes locais e eles só podem usar o dinheiro lá, são normalmente paraísos
turísticos além de fiscais. Não havia real pressão para essas informações
bancárias, e era aceito o lugar destes paraísos fiscais no mundo, com algumas
sanções leves.
Até 2010. Como disse, a crise
pressionou muitos países a buscarem recursos aonde pudessem, e todos sabiam que
havia muito dinheiro escondido nestes paraísos. E começaram a pressionar mais e
mais por estas informações. Além de acusações diretas de bancos suíços
participando diretamente de crimes de lavagem de dinheiro e evasão de divisas,
cabe notar o fato de que esses próprios países sofreram bastante com a crise. Uma
vez que suas maiores receitas provinham do sistema bancário e de turismo, suas
receitas foram abaladas sem grande capacidade de recuperação. E outros países
aproveitaram a oportunidade para apertar esses paraísos. Em Março de 2010 os
Estados Unidos oficializaram a legislação apelidada de FATCA
(Foreign Account Tax Compliance Act). Essa lei diz, entre outros, que os outros
países deveriam informar para a receita federal dos estados unidos a existência
de contas em instituições financeiras de qualquer cidadão americano. Caso
contrário, sofreriam sanções pesadas. Outros países não só começaram a aderir
ao FATCA, como debateram acordos de mútua ajuda no processo. Assim, não só passaram
a informar as movimentações dos americanos para os EUA, mas também receber de
volta informações sobre seus cidadãos em solo americano. A seriedade desse
processo foi tal que a Suíça aderiu ao FATCA. Com isso, mesmo que uma pessoa solicite
ao banco sigilo bancário, ainda assim os bancos suíços informam o número de
contas e o valor total delas. Quem permite a liberação de dados concede
praticamente acesso total de suas movimentações para a receita americana (não
acredita? http://bit.ly/1UzHc9p direto de
jornal suíço).
Contudo, a partir do momento que “pequenos”
criminosos e empresários são revelados por estas contas, igualmente ficou
possível localizar grandes somas ocultas por corrupção em esquemas políticos e
grandes empresas. Antigamente, bastaria todos negarem, e jamais poderia se
provar os pagamentos alegados por Alberto Youssef para os políticos. Antes,
jamais saberíamos se o Cunha realmente recebeu dinheiro porque não receberíamos
a informação das contas na Suíça. Agora é possível questionar
ao Cunha a origem dos recursos naquelas contas Suíças, uma vez que temos
essa informação. E negar não é mais simples, pois existem provas da existência
do dinheiro. O resultado disso, como vimos, é uma onda de investigações
conclusivas sobre corrupção passando por todos os países. Isso significa que
hoje estão roubando mais do que no passado, ou que antigamente não havia
corrupção? Claro que não. Porém, é mais fácil essas informações localizarem o
desvio novo do que o antigo. Isso vai acabar de vez com a corrupção? Igualmente
não. Assim como os vírus, cada nova forma de prender criminosos resulta no
extermínio de uma parte da população e na sobrevivência de um grupo resistente
que se adaptou a estas medidas, seguida pelo desenvolvimento de novas medidas. Ainda
assim, vivemos hoje o que provavelmente será, para muitos países, o fim de uma
era, com o término de um ciclo de corrupção. Em muitos países, ao fim deste
processo, teremos opiniões muito diferentes sobre nossos sistemas políticos.
Certamente haverá, por um tempo, menos corrupção, pois será difícil passar
impune. Infelizmente, por um tempo, enquanto adaptam-se e descobrem novas
formas de passarem desapercebidos do sistema. E, pelo conceito de que a moda
sempre se recicla, não estranharia nada se daqui a alguns anos subitamente
descobrirmos que 90% dos nossos políticos investem em redes de lavanderias...
OBS: Estou usando um teclado US/International, no qual escrever Suíça exige digitar quatro teclas para fazer "íç". Quase desisti de completar este texto duas vezes por causa disso hehe
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Onishiroi Shonin