Vamos lá. Eu costumo evitar a política. Costumo mesmo. Mesmo confrontado, tento guardar minha opinião para mim, e permitir a cada pessoa que faça sua própria pesquisa. Na realidade, eu evito falar qualquer coisa que possa ser entendida como tentativa de mudar a opinião de outra pessoa, salvo caso ela tente me atacar diretamente. Eu amo o livre arbítrio e quero sempre permitir a cada um o total direito de ter o próprio. Mas, as vezes, eu me sinto forçado a manifestar-me.
Certamente você já leu/ouviu algo sobre o debate corrente envolvendo termos como superávit primário, meta fiscal, e umas tais LRF e LDO. E talvez esteja saindo por aí dizendo sua opinião sobre o assunto. Bem, eu vou tentar me manter neutro, mas quero tentar esclarecer o que está em debate. Sou, apesar de meramente um filósofo, indivíduo versado em jurisdiquês (dialeto antigo do português) e quero expor algumas opiniões sobre o debate para auxiliar a formação de opinião. Vamos pelo começo.
Nossa constituição prevê criação de legislação específica para controles de finanças públicas (Art. 163 da constituição). Creio que é fácil compreender que isso faz todo sentido, uma vez que ninguém gostaria que o governo estivesse habilitado a gastar com o que quisesse (como viagens de férias ou financiamento de empresas para parentes), nem que gastasse mais (ok, MUITO mais) do que gera de receita. Claro, ao longo das décadas a legislação pertinente em questão sofreu algumas alterações e emendas, para delimitar eventos não previstos e etecetera. Eventualmente, foi criada a LRF - LEI DA RESPONSABILIDADE FISCAL (Lei Complementar N 101, de 4 de maio de 2000; guarde essa sigla). Essa é a lei em vigor, e ela tem uma série de objetivos. Um dos pontos mais importantes dessa lei é que ela impedia alguns "truques" muito utilizados nos governos anteriores, de no final de um mandato iniciar grandes gastos com coisas vistosas (principalmente obras e criação de empregos mediante novos cargos públicos ou expansão de empresas públicas de forma desnecessária, algum leitor lembra dos tempos que havia uma fábrica estatal de GUARDA CHUVAS?), e os gastos ficavam na conta do próximo governo, que começava com impopulares medidas de corte disso tudo para ter algum recurso. Além disso, a lei prevê a meta de superavit fiscal. Superavit significa, de forma extremamente simplificada, receber mais do que gasta. O leitor pode se perguntar como seria possível gastar mais do que se recebe. Quem tem cheque especial certamente sabe que é possível. O governo tem, de forma similar, formas de gerar recurso mediante empréstimo, seja pelo tesouro direto, seja com FMI, ou com outras formas mais complexas. A obrigatoriedade de Superavit fiscal existe com o objetivo de garantir que esse endividamento público diminua, e não cresça. Alguém poderia dizer que é insensibilidade uma lei que prevê a capacidade de sempre receber mais do que se gasta, mas essa sensibilidade existe. A lei determina metas variáveis dependendo do crescimento econômico (PIB, entre outros dados) de forma que haja flexibilização correspondente dessa meta ou mesmo sua liberação em cenários de contração econômica (AKA, recessão. Fuja dessa palavra, ela não é legal).
A LRF (guardou a sílaba né?) define várias regras, mas essas metas são estabelecidas de acordo com uma outra lei, que é referência desta, a LDO - LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS (essa lei é definida anualmente, com base em vários dados, para estados e união). Essencialmente, a LRF diz como pode ser gasto, e a LDO diz o QUANTO pode ser gasto com O QUE, e meu objetivo de superavit. Isto é, na LDO tem regrinhas que me proíbem de gastar demais com uma coisa, que de outra forma me permitiria "enganar" minhas metas (por exemplo, exagerando no gasto com cargos públicos para maquiar o desemprego).
Caso em um ano o governo não atinja os objetivos na lei, qualquer cidadão pode denunciar o evento, que deve ser julgado e, caso condenado, prevê alguns efeitos, como o afastamento de cargos públicos por prazo não superior a cinco anos (Lei N 1.079, de 10 de abril de 1950. É, não é lá a pena mais severa que tem na legislação brasileira, roubar uma galinha é muito pior do que endividar o país). Pode ser pouco, mas significa que os envolvidos perdem pelo menos um período eleitoral, já que são imediatamente destituídos de qualquer cargo em que estejam (e só podem ser restituídos caso outro julgamento os absolva). Ou seja, descumprir a meta é algo chato. Não é o fim do mundo, mas é chato, além de um desgasto na imagem (não que o desgaste seja tanto, o Collor é prova de que é perfeitamente possível ser condenado e voltar algum tempo depois inocentado com um penteado diferente).
Nosso governo atual, já há algum tempo, estava em risco de não cumprir a meta. Recentemente, este risco deixou de existir para tornar-se uma certeza. No cenário atual, é IMPOSSÍVEL atingir o superávit fiscal. Não estou exagerando ou sendo tendencioso. Exagero e tendenciosismo estão entre os motivos pelos quais evito este assunto. Porém, como alguns sabem, eu trabalho com números. Volte ali naquele impossível em letras capitais acima e fique olhando para ele um pouco. Eu espero.
Números não mentem. Sim, cálculo diferencial e limite podem gerar opiniões diversas sobre seus resultados, mas balanços e controles de custo/receita não tem como ter resultados distintos. 2 + 2 = 4 e 2 - 4 = -2 sempre. Então, quando digo que o superavit não pode ser alcançado este ano não estou falando por minha posição política, e sim por matemática básica. Exceto...
Lembra que a LDO determina o QUANTO gasta-se com o QUE? Então... ela também determina como a gente faz a conta do superavit. E, como falamos, ela prevê flexibilizações. Existem alguns gastos contingenciais que não contam no superavit, por exemplo. Isso significa que se eu gasto 10, mas 2 foram gastos em "despesa que não conta no superavit", eu conto como se tivesse gasto 8. Assim, se recebi 12 e meu superavit era 4, eu teria alcançado o objetivo. Pegaram até aqui? Ótimo. Se quiser que eu repita, é só mover a barra de rolagem para cima. O texto é longo, aproveite para beber uma água. Agora vamos em frente.
Ontem, 11/11/2014, foi encaminhado ao congresso projeto de lei para alteração da LDO 2014. Esse projeto altera um parágrafo de forma a, simplificadamente, permitir que os gastos com o PAC deixem de contar para a meta do superavit. Isso significa, na conta até o mês passado, um valor de 127 bilhões de reais. Nossa meta de superavit é de 116,1 bilhões. Só com a aprovação dessa lei já passamos do nosso atual déficit primário para o lado positivo da balança. Adicionalmente, o PAC prevê várias formas de autorizar rapidamente gastos adicionais. Como cada real gasto no PAC não conta, até o fim do ano é possível que esses 127 bilhões cresçam conforme necessário. O que isso significa?
Digamos que VOCÊ determine uma meta de, no ano, começar e fechar o ano sem dever um real no banco. Em novembro, faltando 40 dias para o fim do ano, você olha sua conta no vermelho e determina que o gasto com cartão de crédito não entra nessa regra. Então em dezembro pode perder a linha a vontade no cartão que continua obedecendo sua meta pessoal. Parabéns.
Essencialmente, é isso que o governo está fazendo. Ah, a LDO já foi alterada esse ano. Quatro vezes se não me engano. Mas nenhuma vez foi na reta final do ano, com o balanço negativo e colocando na conta a permissão para descontar uma nota bilionária que tem autorização para crescer mais o quanto quiserem. É claro, essas coisas demoram para ser votadas, então foi designada urgência. HOJE (o projeto foi apresentado ONTEM, e HOJE, 12/11/2014) já foi levantado (www.congressonacional.leg.br/portal/noticia e também www2.camara.leg.br/camaranoticias coloque esses links nos seus favoritos, compartilha com os amigos para fazerem o mesmo. Não peço isso para meu blog, mas para esses endereços eu peço).
Paro por aqui, como disse, não quero expressar minha opinião pessoal, apenas permitir aos que estão fazendo isso tenham conhecimento de causa. Sem mais.
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Onishiroi Shonin